autorretrato 

A espera

12/11/13

Manhã ensolarada e de ventos fortes, quase contínuos. Sopram predominantemente do norte. O roçar de folhas traduz em som o deslocamento do ar, é a voz dos sopros e rajadas. O velho bambuzal, congestionado de bambus velhos e jovens, se inclina na ventania e range e estala sob esta força da natureza. Passa um avião, de leste para oeste, e seu ronco se incorpora à sinfonia.

Talvez os ventos tragam chuvas e intempéries, conforme previsto, chuvas que, no sul, provocaram inundações e contratempos. Alheio ao sopro forte um sabiá impõe seu canto claro, limpo e forte. Parece bem próximo. Logo depois o som insistente vem de mais longe. Pássaros voam! Um gavião pequeno paira ajudado pela ventania. Chega a se deslocar lateralmente contra um azul rabiscado de pinceladas diáfanas a desenhar vultos e seres conforme a imaginação do espectador.

De repente, chegam nuvens mais volumosas e, com elas, aumenta a sensação de umidade: o tempo vai virar! A natureza ensaia a sexta de Beethoven. Muito rapidamente a cena muda. O vento venta mais frio! A luz vacila, o sol some e volta ao sabor da passagem das nuvens. Com folhas novas e muitas flores a vegetação enfrenta o vento num murmúrio crescente. Voam alguns objetos. Os ventos sopram com mais força, mas é o apagar do sol que entristece a cena, riscada de tempos em tempos pela voz das turbinas de um avião.

Sem dúvida, a tempestade se aproxima. Vou pôr um ponto final aqui para recolher o que for preciso abrigar e fechar portas e janelas, à espera do temporal.

12/11/2013, at 11:35

Conhece essa poeta, Clode?

Acontece-me estar sentada debaixo de uma árvore,
à beira-rio,
numa manhã de sol.
Trata-se de um facto inócuo
e não fará parte da história.
Não são batalhas ou pactos
cujas causas se pesquisa,
nem memoráveis assassínios de tiranos.

E contudo aqui estou à beira-rio, é um facto.
E se aqui estou
de algures tive de vir,
e, antes disso,
que deambular por muitos lugares,
tal qual os conquistadores de terras
antes de subirem à coberta.

Qualquer momento mesmo fugaz tem seu passado luxuriante,
a sua sexta antes de sábado,
o seu Maio antes de Junho.
Tem os seus horizontes tão verídicos
como em binóculos de comandantes.

Esta árvore é um choupo há anos enraizado.
O rio é o Raba e é não de hoje o seu fluir.
Não foi anteontem que este carreiro
foi repisado entre os arbustos.
O vento, para dispersar as nuvens,
teve antes que aqui as juntar.

E embora aqui em volta nada de grande aconteça,
nem por isso o mundo é mais pobre de pormenor,
mais mal fundamentado, mais fragilmente definido,
que quando o dominavam as migrações dos povos.

Nem só as secretas conspirações se rodeiam de silêncio.
Nem só às coroações conduzem os cortejos.
Rolam os aniversários das revoluções
como revolteiam os seixos das margens.

Intrincado é também o denso bordado das circunstâncias.
O carreiro de formigas sobre a erva.
A relva cosida ao chão.
o desenho das ondas onde o graveto se insinua.

Acontece assim, estou e olho.
Volteia sobre mim uma borboleta branca
batendo asas que só a ela pertencem,
e, sobre a minha mão, a sombra que
não é de outra, de mais ninguém, é só dela.

E, vendo isto, sinto sempre uma certeza abandonar-me:
a de que aquilo que é importante
o seja mais do que aquilo que não o é.

(Wislawa Zsymborska)

      sem assinatura

Não, nunca ouvira seu nome, mas descobri ser uma poetiza polonesa e, o que importa, é a excelência do poema que você escolheu (importante, também, a excelente tradução, com sotaque de Portugal), poema onde me senti tão eu.


2/11/2013, at 16:57

Muito legal,Clode.Principalmente a última frase. bj

      sem assinatura

Você me entende, creio. Tem uma casa também sujeita a ventanias e tempestades. Obrigado, c.


12/11/2013, at 17:04

foto da missivista
foto da missivista

Olá Clode

Linda sua crônica. Descreve exatamente como foi o dia de hoje.
Sinceramente, gostaria de tê-la escrito!

Beijos da Vera

Use-a à vontade, diga que é sua. Se preciso, confirmarei.

O bambuzal aqui é de bambu-brasil, espremido em um canto estreito... Obrigado pela imagem.

c.


13/11/2013, at 23:13

Adorei a sinfonia, pude ouvir os sons que suas letras descreveram poeticamente e me transportaram para aquele momento!
Muito obrigada
Beijos
Maria Helena

Obrigado fico eu.
Poética, também a sua mensagem.
c.

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