auto-retrato 

A formiguinha

08/12/11

Há vinte e dois anos e alguns dias, um telefonema no início da madrugada dava notícia de um acidente que resultaria, dias depois, na morte do Rafael. Ele tinha, então, pouco mais de vinte e dois anos. Não acredito nos critérios e medições da medicina para determinar o fim da vida. Ao longo dos tempos eles vêm mudando e já foram, por exemplo, o embaçamento de um espelhinho colocado junto às narinas do eventual cadáver. Por isto, nunca saberei, ao certo, quando ele morreu. Documentos e certidões, em geral, tampouco me dão certeza do que atestam e proclamam e neles nunca me aferrei.

Rafael teria hoje quarenta e quatro anos, como se afirmou acima. A morte é cabal, irreversível. Sobra o vazio, um buraco capaz de engolir mais vidas. Sobra o silêncio de não haver nada a dizer, apesar desta tentativa aqui.

Ontem, completaram-se os vinte e dois anos, pela certidão de óbito. Mas, que sabemos sobre a vida e, consequentemente, sobre a morte? Uma vida termina e outra começa a cada instante, mundo afora. Sem falar nas vidas todas, de animais, vegetais, fungos e protistas. Pergunto-me, por vezes, se matar, no quinto mandamento de Moisés, é intransitivo. Seria um contrassenso: nenhuma vida prospera sem matar, a vida se nutre da vida.

Hoje, se vivo fosse, meu avô completaria 143 anos. Hoje, também, matei algumas formigas, daquelas quase invisíveis, no quarto de dormir. Matamos com grande indiferença, seja ao esmagar com o indicador ou polegar o minúsculo inseto, seja ao cortar a fatia de filé-mignon ou arrancar do chão o pé de alface. Atualmente, me incomoda matar o que quer que seja, a formiguinha, um mosquito, uma mosca, uma barata.

Minha mãe, já velhinha, me falou enquanto esmagava com o polegar algumas formiguinhas sobre a pia da cozinha: às vezes, penso que somos como elas e vem o dedo de Deus e tudo acaba.

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