auto-retrato [1987]

Abana o fogo

12/11/07

A lógica é falaz. Prova algo e seu avesso, demonstra o verso e o reverso com a mesma aparência de irrefutabilidade dos argumentos bem delineados, com o brilho do arcabouço que Descartes chamou de gaiola, bela imagem que pinto de dourado, tudo muito lógico e saboroso ao paladar da razão.

Tudo muito razoável, como o é que dona Fulanilda concluísse por deduções pessoais e intransferíveis - ou as estaríamos a transferir aqui? - que a luz que lhe alumia o barraco fosse roubada de raios e relâmpagos pelas maravilhas milagreiras das engenharias humanas, pois muito se falava, até pelo radinho à pilha, que era preciso se agarrar com São Pedro e orar por chuva, muita chuva, pedir com fé e verdadeira devoção. Ora, nas razões de dona Fulanilda, a chuva não teria outro caminho para suas lâmpadas senão os riscos de fogo, o estardalhaço de luz que, ao desenrolar de trovões e trovoadas, clareia por um átimo a mais escura noite.

Já meu cão, por seu lado, navega por lógica diferente, derivada, provavelmente, de hormônios, neurônios e memórias arquetípicas. Ele odeia temporais com raios e trovoadas e, como não há tempestades de raios mudos nem trovoadas cegas, toda afirmação de que o terror da cachorrada vem do som ou do clarão seria mera especulação. Lógico, meu caro Watson! Elementar.

Na esgrima de argumentos, no fluir das teses e antíteses, no ebulir das dialéticas arrisca-se intuição, sufoca-se instinto. E as máquinas que fazemos nos fazem máquinas também, chame-se alavanca ou robô ao que me estende além de mim, faz-me peça da engrenagem que desconheço.

O brilho da gaiola de ouro da Lógica e o cintilar das pedras da Razão ofuscam e nos cegam à essência do humano. Embora a tecer com o fio da Lógica na agulha da Razão o deus-macaco que louva e amaldiçoa deuses e macacada, não somos macacos nem deuses tampouco.

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