Anonimato

13/01/98


Para muitos, o anonimato pesa como uma condenação. Os ricos, os verdadeiros ricos, depois de possuirem todas as alucinações que suas fantasias conseguem imaginar, sentem-se pobres como o mendigo de porta de igreja só porque seu nome não é tão popular como o do cantor de rádio ou do jogador de futebol. Buscam a cura para a síndrome do anonimato por todos os meios. Procuram os terapeutas mais caros e torram boa parte de suas fortunas na tentativa de comprar a fama, esta senhora não muito virtuosa e nem um pouco indiferente aos apelos de subornos e corrupções...

Conheci alguns ricos de verdade. Certa vez, um deles me disse que as coisas verdadeiramente importantes estavam na coluna social e, ao dizer isso, abriu o jornal e pôs-se a conferir a página do Tavares de Miranda. Para ele, ali estavam as notícias do mundo que importava considerar. Os mais jovens, provavelmente, nunca ouviram falar do Tavares de Miranda. Certa vez chaguei a redação da Folha muito cedo, por qualquer razão, e apenas ele estava lá. Sozinho, numa mesa da redação geral (ainda não se tinham inventado as salas fechadas e especiais para certas editorias) trabalhava ao telefone, com sua agenda e uma pilha de convites e coisas assim. Telefonava, conversava, confirmava, tentava arrancar algo especial e ia, desse jeito, montando sua coluna... Os outros editores e repórteres só começaram a chegar lá pelas onze da manhã, quando o Tavares acabava seu trabalho, na máquina de escrever.

Outro dia, vi no Estadão uma intrigante nota na coluna social. Hoje, o colunista chama-se colunista e tem colaboradores, um ou mais. A nota vinha com o título de "Decoração Ecológica" e informava que numa das praias do Guarujá haveria uma "mostra de design e decoração com preocupações ambientais". Não esclarecia de quem eram as preocupações, tampouco o que as provocava: se o uso e abuso do mogno e outros paus, que saem misteriosamente das amazônias, para voltarem como móveis importados; se os designers ofereciam soluções para eventuais chuvas ácidas ou outras possíveis conseqüências da deterioração do meio ambiente (como o evento era numa praia, talvez a preocupações fosse a elevação do nível dos oceanos, por causa do buraco na camada de ozônio, etc.) ou se a preocupação seria apenas a de conseguir alguma verba internacional, de outras entidades igualmente tomadas de iguais preocupações ambientais.. Nada. Preocupava-se, isso sim, em citar um rol de nomes e sobrenomes, que preenchiam mais da metade da nota. (Sempre me pareceu que é esse o objetivo primeiro e fundamental das colunas sociais: catalogar nomes sobre nomes e sobrenomes, numa espécie de confirmação dos aceitos e eleitos.)

Calma, dona Sabrina, calma. Sei muito bem que isto aí não tem nada de mais e nem mereceria menção, principalmente, dona Sabrina, porque seu nome e sobrenome não estavam lá, na lista interminável. Mas, no final, a nota explicava ainda, que os visitantes da tal mostra, com o sugestivo nome de Decô, "terão acesso de carro à praia. Só cem carros por vez. Uma bilheteria será montada na entrada do condomínio." E mais não dizia, por estar, afinal, tudo dito aí!

O que antes foi chamado de praia São Pedro é algum recanto do litoral - como muitos outros - que foi fechado, para usufruto de uns poucos. Transforma-se, no final da curta nota, em condomínio. As preocupações ambientais, antes não explicadas, tornam-se claras, pelo limite imposto: "Só cem carros por vez". E o toque sutil, de exclusão, fica apenas implícito, já que não seria "de boa etiqueta" publicar o preço da entrada cobrado na bilheteria... Pode-se imaginar, ainda, um bônus extra e eventual, para os que comprarem o direito de desfilar suas preocupações ambientais na praia, à bordo de um carro importado, de preferência, do ano: a publicação de seu nome e sobrenome naquela ou em outra coluna social. Se for muito inspirado nas ousadias do desfile, quem sabe até com direito a uma foto?

Não é uma solução para o trauma do anonimato, mas serve como paliativo. Serve também para que algum novo Fellini possa sonhar um novo "Dolce Vita". A cena me parece fascinante! Peruas - carros e gente - desfilando ao som de Nino Rota pelas areias escuras e úmidas do sombrio litoral paulista. Mulheres em biquínis maluquíssimos e descalças ao lado de outras, em cima de saltos enormes, com vestidos compridos que se abrem em fendas dos quadris aos pés! Echarpes de plumas e chapéus enormes, para proteger do sol! Homens em sungas sumárias misturados a outros em smokings e gravatas borboletas! Crianças também! Para trazer um pouco de suspense à cena, com os cem carros e seus motoristas de boné e paletó azul marinho sendo obrigados algumas freadas e derrapagens nas areias molhadas, numa mistura de sons de buzinas e gritos histéricos à trilha do Nino... E, é óbvio, também no filme se evitaria mostrar a bilheteria montada na entrada... tudo se passaria como se os ricos habitassem um quase paraíso, mas onde uma perua com uma perua dentro ainda pudesse irremediavelmente atolar, por obra e força de um onda mais forte de mar...

 

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