autor durante aula na Editora Abril [1968] crônica do dia - gemido esporádico, sobra do que um dia se imaginou berro


Bando passageiro

10/03/08

Meio-dia e meia. O céu se tolda de nuvens escuras. A princípio os gritos me evocaram bem-te-vis, mas outras aves apareceram, todas iguais, com voz estridente e trinada. Lindas.

De corpo branco, talvez com um levíssimo sombreado creme, dorso e parte de cima das asas, negro ou cinza muito escuro. Riscos pretos de destro pincel delineavam o contorno dos olhos. No alto da cabeça, as penas eram altas e fofas. Talvez, de cor mais amarelada, também.

Logo me lembraram os pica-paus, mas lhes faltava o topete que, por aqui, se vêem amarelos ou vermelhos. Todas disputavam uma determinada flor de helicônia, planta que se confunde com bananeira-de-jardim. As folhas da planta eram poleiro ruim. Vergavam-se com o peso das aves, umas seis, pelo menos, gritando um trinado agudo umas com as outras. Não tinha espaço para todas comerem ao mesmo tempo e, por isto, se expulsavam em permanente revezamento.

Minto, uma pousou no tronco do velho chico-magro à moda dos pica-paus. Outra, ao pousar na ponta de uma folha se viu obrigada e arremeter, como dizem os pilotos e pousou do mesmo jeito num tronco morto. A agitação foi tanta que, minutos depois, se foram, inesperadamente, como chegaram. Restaram latidos longínquos. Agora, sim, um bem-te-vi pia insistente e solitário (para meus ouvidos) e sublinha a diferença da voz com as aves do bando passageiro.

Como elas, o dia clareou e, por entre muitas nuvens algodoadas, o sol achou caminho e inundou a vida contra um fundo escuro.

Assim também, nosso humor oscila a troco de passageiras nebulosidades... ou da presença do minúsculo mosquito. Vapt! Mas ele escapa...

Uma hora. Pela janela, dá para ver quatro bem-te-vis nos galhos quase nus do chico-magro. Gritam uns com os outros. Um abre um pouco ao braços, digo, asas, ao cantar. Ao fundo, o céu escurece...

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