O Banquete

 

Parou, estarrecido, diante da cena. Nem em filme de Hollywood jamais se tinha visto algo parecido, muito menos, igual. Espalhadas por todo o gramado, que ondulava até às longínquas névoas do horizonte, viam-se suntuosas mesas repletas de iguarias. De todos os tipos, de todas as cozinhas, cozinheiras e cozinheiros, pois quase sempre as mais especiais vêm sem qualquer assinatura. Tudo do mais requintado gosto, com rendas e linho, cristais e pratarias. Já disse: nem em filme de Hollywood!

A cena, apesar do conteúdo gastronômico, era de encher os olhos. Parou, embasbacado, e só lhe vinha uma frase, que já não sabia se era sua, ouvida ou lida: "o peixe morre pela boca, o homem, pelo olhar." Diante de tantos manjares a se oferecer com tanta volúpia, Demerval oscilava entre o desejo de mergulhar num oceano de todos os prazeres e certeza da impossibilidade de saborear a todos, a angústia de ter que optar.

Notava que havia outros convivas, muitos, espalhados em pequenos grupos pela imensidão do lauto festim. Aparentemente não passavam pela mesma agonia. Pegavam, ao acaso, uma ostra, um quindim, uma perninha de rã ou outro quitute, que levavam à boca com indiferença entre cochichos e caminhadas de passos miúdos até a próxima mesa. Um gole de frescas bebidas, da taça que resolvia o problema do que fazer com uma das mãos, arrematava com um gesto blasé...

Demerval se viu paralisado pelas perguntas que o assaltavam e ele não sabia responder. Por onde começar? Haveria, é óbvio, uma ordem ditada pelo próprio paladar, como em uma melodia, onde cada nota, de certa forma, anuncia e prepara a chegada da próxima. Por essa trilha seria mais ou menos fácil seguir e por ela optar, não fosse a certeza de que a melodia dos sabores seria fatal e bruscamente interrompida, num momento imprevisível, deixando de fora sabe-se lá quantas maravilhas desde já cobiçadas. Seria, forçosamente, uma sonata inacabada, sem o sabor misterioso e peculiar dos finais das melodias...

Perdido nessas inúteis cogitações e outras de mesmo teor, Demerval decidiu que não havia pressa. Poderia resolver com calma, observar mais, comidas e convivas. Além do mais, tinha certeza que, no momento apropriado, a luz se faria em seu espírito e aí, e só então, começaria a alimentar o corpo. No fundo, no fundo, tinha criado para si uma hierarquia da importância dos alimentos e aqueles destinados a alimentar a células, a transformarem-se em sangue urina e fezes, esses ocupavam o lugar mais rasteiro. Demerval acreditava na importância de alimentar o espírito!

De fato, por se tratar de um lugar mágico, o tempo não se fazia sentir ali. Não parecia ser manhã nem tarde e o dia não parecia caminhar para a noite. É claro que o planeta continuava em seu destino de pião e o ocaso e a aurora continuavam a transformar o dia em noite, e vice-versa. Apenas, os que estavam no banquete não atentavam para essas ninharias, ou fingiam, para si e para os outros, não as perceber. Assim, Demerval esperava a compreensão definitiva, a clareza de espírito para, então, cuidar de alimentar o corpo, começar a comer. Tanto pasto, por que se apressar? Vamos caminhar um pouco e descobrir outras cozinhas, outros cheiros, outras cores, que daqui não se podem adivinhar...

Ora, o destino de pião e planeta, com órbita, oscilações e nutações, este destino que nos parece eterno, não o é. Pode durar alguns bilhões de anos, um pouco mais, um pouco menos, mas tem seu tempo, acabará. Enquanto dura, a cada noite segue-se um novo dia, para o qual arrastamos todo nosso ontem, impedindo que seja, de fato, novo, e um punhado de dias faz um mês e uns poucos meses, um ano. Quando nos damos conta, alguns ciclos, umas tantas órbitas completadas, essas voltas do "roda pião", e o tempo passou. É preciso avisar, é urgente: Come, Demerval! Já, qualquer coisa!

Demerval não comeu. Demerval morreu de inanição.

 

Publicada em 17 de março de 1999

 

 

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