Crônica do dia

Beleza Perfeita

24/11/05

Meu pai olhava o filho adolescente a repetir o mesmo disco de Beethoven, 78 rotações, em vitrola portátil horas a fio e dizia apenas: "sonha, sonha sonhador!" e seguia em sua batalha. Com sonhos dele e os de um livro cujas palavras roubo a outro sonhador, simulo cronicar. Sonha, sonha, leitor.

desenho de Anucha
desenho de Anucha

Não! Não compreenderás o prazer que consiste
em se amar, como eu amo, um ser que não existe!
Plasmei-a dentro em mim e fi-la minha Eleita.
Chama-se essa mulher: a Beleza Perfeita!
A amada de D. João como é linda! No fundo
resume tudo que há de mais belo no mundo!
Ante o seu resplendor as estrelas são turvas:
é um poema de carne, um cântico de curvas!
Fi-la juntando a esmo a perfeição que encerra,
fragmentada e dispersa, a beleza da terra...
Nunca compreenderás o meu sonho exaltado:
como Osíris, o amor existe mutilado...
A eleita que sonhei enxergo-a, mas que queres?
vive disseminada em todas as mulheres.
Sinto, vendo-a num seio, ou na curva de uns braços,
que a mulher que eu adoro é feita de pedaços...
Existe em toda a parte, e cada mulher bela
esconde no seu corpo alguma coisa dela!
Esta guarda-lhe o olhar; aquela, as carnes brancas;
uma, a forma do torso; outra a fuga das ancas.
Tomando de uma a cor, de outra um traço indeciso,
desta o corte do lábio e daquela um sorriso,
eu, fragmento a fragmento, a amada recomponho,
pois, em cada mulher, há um pouco do meu sonho!



MENOTTI DEL PICCHIA - Versos finais de "A Angústia de D. João"
do livro "Poemas", São Paulo, Martins, 1960, pág.158/9.

|home| |belezaria| |índice das crônicas| |mail| |anteriortem carta... tem carta...

2453699.643