Blecaute

 

Bom dia!

Aqui estão as últimas notícias de hoje, 30 de março de 1999, 12:20 (UT - Tempo Universal), 23 graus, 4 minutos e 28 segundos ao sul do equador e 46 graus, 51 minutos e 13 segundos a oeste de Greenwich.

A atmosfera está limpa, pelo menos, mais limpa do que de costume. Com isso, o dia amanhece muito azul e o verde das folhas se recorta mais nítido contra a céu. Não se pode ver nuvem alguma, só azul. Apesar de já estarmos no outono e grande parte das árvores mostrar poucas folhas, faz calor e o sol, mesmo oblíquo, promete um dia muito quente. Além do mais, há uma quietude no ar, que a ciência não pode explicar e os mais apressados nem chegam a perceber.

A lua está quase cheia e, se as condições da atmosfera permanecerem, teremos uma esplêndida noite de luar. Será cheia, com a precisão dos astrônomos, às 22:49 horas (UT) do dia 31. Se as coisas continuarem assim, a ocasião ideal para um blecaute. Longo apenas o suficiente para as pessoas se encontrarem ao luar. Para evitar prejuízos e aborrecimentos, inevitáveis numa interrupção súbita, como ficar preso em elevador ou se ver todo ensaboado debaixo da ducha fria, poderíamos pensar num blecaute anunciado...

Assim, os namorados poderiam se programar para passear de mãos dadas sob a luz do sol que a lua nos manda pálida e bela. Todos os namorados, mesmo aqueles que há muito já o deixaram de ser, poderiam mudar um pouco os hábitos e combinar de ir até a praça, brincar com as sombras nítidas, definidas, da noite de atmosfera transparente e lua cheia - ou quase - e blecaute profilático, para o bem de corações e mentes.

O horário ideal para começar a escuridão silenciosa seria, é óbvio, o chamado nobre da televisão. Isso nos livraria do enfadonho noticiário, agora especializado em relatórios de casos policiais daqui e guerras internacionais. Depois, seria uma excelente medida do quanto muda a vida de uma nação se sua população perder um capítulo inteiro da novela da tevê.

Os pais poderiam aproveitar e explicar às crianças que além daquele satélite antigo, há hoje milhares de outros, rodando ao redor da Terra e responder a perguntas que eles também fizeram e às quais o Homem procurou responder desde do tempo em que ainda se disputava com os bichos o abrigo das cavernas. Por que a lua não cai? Onde ela está pendurada? Para onde ela (ou o sol) vai quando desaparece no horizonte? Por que quando ela aparece de dia, no céu azul, nunca está cheia? Por que quando tem lua o céu fica com muito menos estrelas? Por que as estrelas são tão pequeninas? E os avós poderão contar para os netos que acham que o céu tinha mais estrelas quando eles eram pequenos e aproveitar para inventar lindas histórias.

Mentir - porque quando uma avó ou um avô mente para o seu neto ou neta, não está mentindo - mentir dizendo, por exemplo, que quando um criança nasce, para ela o céu tem tantas estrelas, mas tantas, que é como se fosse um tapete de luz. Depois, a medida que ela vai crescendo, algumas vão se apagando e, quanto mais ela cresce, mais estrelas se apagam e a medida que ela deixa de ser criança, o céu vai ficando embaçado, como se uma fumaça escondesse as estrelas e o céu fica triste, só com uma estrelinha aqui, outra ali...

A essa altura, para evitar um quase inevitável final trágico, é bom que o avô, ou a avó, enfatizem bem para aquele ser - que vai ser a gente amanhã - que quem é esperto, e tem olhos de enxergar longe, pode continuar criança, mesmo depois que o corpo crescer... Aqui mesmo, nesta Terra, com essa lua velha e essas estrelas, que estão aí há muito mais tempo do que nós, sem precisar Terra do Nunca nem pó de Pirlimpimpim.

Não consigo mais ver os noticiários da tevê. Nem ouvir os do rádio. Nem ler os jornais. Neles, nunca encontro notícias assim. Bom dia!

 

Publicada em 30 de março de 1999

 

 

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