trechos do livro de Raymond Cartier

"a segunda guerra mundial"

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Enquanto isso, a bomba atômica toma corpo. No início de maio, o General Groves informa Truman do estado de adiantamento dos trabalhos. Little Boy, a bomba de plutônio, estará pronta no início do verão. Fat Man, a bomba de urânio, venceu as imensas dificuldades técnicas apresentadas pelo processo de separação isotópica por difusão gasosa. Uma formação especial de B-29, o 509° Composite Group, comandado pelo Coronel Paul W. Tibbets, prepara-se, desde o fim de 1944, para lançar bombas postiças com as correspondentes características previstas para os dois engenhos. Stimson, enérgico protagonista do plano da bomba, já constituíra um Target Committee, encarregado de propor os objetivos mais convenientes. O Comitê apresentou a seguinte lista: 1. Hiroxima (grande porto e cidade militar importante); 2. Kokura (principal arsenal japonês); 3. Niigata (grande porto, refinaria de petróleo, fábrica de alumínio, etc.); 4. Quioto (grande diversidade de indústrias de guerra). Apesar dos protestos de Groves, Stimson riscou Quioto, em razão de seus tesouros artísticos, e substituiu-a por Nagasáqui.

Assim, estava tudo preparado para o acontecimento da bomba atômica - enquanto não se sabia ainda se ela não passava de uma quimera. Um problema prejudicial, porém, se apresenta: concebida contra a Alemanha, deverá ser empregada contra o Japão?

Diante dessa transferência de objetivo, surgem os escrúpulos de consciência. "Aos olhos de certo número de cientistas refugiados nos Estados Unidos para escapar às perseguições raciais - escreve o General Groves -, Hitler era o inimigo supremo, que devia ser aniquilado por todos os meios. Eles sentiam menor grau de entusiasmo pela destruição do militarismo japonês." O Dr. Leo Szilard, que insistiu com Einstein para propor a Roosevelt a utilização militar da energia nuclear, foi o primeiro a experimentar a dúvida, e procura meios de fazer Truman também participar dela. Outros, como o Dr. Franck, pensam que a bomba atômica deve ser lançada numa área desabitada, talvez sobre o Fujiama, a fim de que os japoneses tenham uma demonstração de seu poderio e resolvam-se a capitular.

A 9 de maio, a conselho e sob a presidência de Stimson, Truman constitui um Comitê Consultivo encarregado de estudar as conseqüências da nova arma e de emitir sua opinião sobre a oportunidade do emprego contra o Japão. Participaram três cientistas: Karl Compton, presidente do Massachusetts Institute of Technology; Vanevar Bush, presidente do Institute Carnegie, e James B. Connant, presidente da Universidade de Harvard. Eles próprios se cercam de outros luminares científicos: Arthur Compton, Enrico Fermi, E.O. Lawrence, Oppenheimer, etc. A 1° de junho, o Comitê envia ao Presidente um relatório nestes termos: 1. A bomba atômica deve ser utilizada contra o Japão; 2. Deve ser lançada sem aviso prévio; 3. Deve exercer, sem equívoco, seu poder de destruição. "Os membros do Comitê - disse Truman - concluíam que nenhuma demonstração técnica, como uma explosão numa ilha deserta, seria suscetível de conduzir ao fim da guerra; era necessário lançar a bomba contra um objetivo real." A única opinião contrária não vinha de um homem de ciência, mas do Secretário-adjunto da Marinha, Ralph A. Bard.

Em 18 de junho - enquanto as ruas de Washington ecoam de exclamações, saudando o retorno dos heróis de Eisenhower -, o problema da bomba atômica é apresentado aos planejadores da estratégia norte-americana. Eles consideram, por unanimidade, que a questão é sobremodo aleatória para entrar em linha de conta nos seus projetos. Leahy reitera seu ceticismo categórico. Os demais vêem na energia nuclear um explosivo como qualquer outro, que tem necessidade de fazer suas provas. Os planos de invasão do Japão, Olympic e Coronet, são confirmados.

Nesse momento, estão em preparativos dois grandes acontecimentos : o teste da bomba atômica e a conferência de Potsdam.

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No fim de julho, as cinco principais cidades japonesas, Tóquio, Osaca, Nagóia, Cobe e Iocoama, são destruídas em proporções que vão de 40% a 65%. Os principais objetivos industriais, atacados um a um, estão em ruínas. As cidades secundárias são objeto de um programa incendiário especial, efetuando-se reides de 30 a 200 B-29. De 17 de junho a 14 de agosto, são atacadas sessenta destas, cuja população varia dos 323.000 habitantes de Fucuoca aos 31.250 de Tsuruga. Muitas são incendiadas numa proporção de 60, 70, 80% de sua área, e uma delas, Toiama (127.860 habitantes), na de 99,5%. Aproxima-se do milhão o número de vítimas. Sobrevém a fome. A propaganda continua, no mesmo grau, a proclamar a invencibilidade do Japão. Seu raciocínio é o seguinte: será preciso matar-nos a todos para nos vencer; ora, somos 100 milhões e é materialmente impossível, mesmo aos norte-americanos, exterminar 100 milhões de seres humanos. Somos invencíveis; portanto, venceremos!

A este país desesperado, os Estados Unidos desejam oferecer uma chance de sobreviver. A 2 de julho, isto é, antes da explosão de Alamogordo, Stimson envia a Truman uma comunicação em que lhe sugere dirigir ao Japão uma última intimação para depor as armas. No Departamento de Estado, Grew, que foi embaixador em Tóquio, luta com todas as suas forças para que se faça chegar ao conhecimento dos japoneses que os vencedores não exigirão a destruição do trono imperial. A discussão prossegue em Potsdam. Prepara-se um texto no qual é assegurado ao Japão que poderá escolher livremente a forma de governo que desejar. Consegue-se uma fórmula mais explícita: "This may include a constitutional monarchy under the present dynasty..." (Isto pode compreender uma monarquia constitucional sob a atual dinastia...). Fica especificado que a soberania nipônica será limitada às quatro ilhas metropolitanas - Hocaido, Honxu, Xicocu, e Quiuxiú - portanto, que todas as conquistas do Japão a partir do Imperador Meiji serão perdidas. Em contrapartida, e sempre exigindo uma capitulação incondicional e sem demora, os Aliados prometem o repatriamento e a libertação das tropas japonesas, a permanência das indústrias necessárias à vida nacional e uma participação do Japão no comércio mundial. "The alternative for Japan is prompt and utter destruction... (A alternativa para o Japão é a imediata e total destruição... )".

Radiografada a Chiang Kaichek, a proclamação de Potsdam recebe a sua assinatura. Churchill apõe também a sua, concluindo seu último ato de Primeiro-Ministro de guerra. Os russos, não estando em estado de beligerância com o Japão, não foram consultados. Não escondem a sua indignação. De resto, eles não desejavam nem objetivavam um fim rápido da guerra do Pacífico. Calculando que a luta duraria até o outono de 1946, propõem-se participar dela em grande escala, contam intervir na invasão do arquipélago e, em conseqüência, esperam associar-se à ocupação do Japão. Desejam, em particular, que seja abolida a monarquia e que Hirohito, julgado como criminoso de guerra, seja enforcado.

A proclamação aliada é divulgada a 26 de julho. No mesmo dia, a carcaça de uma bomba atômica, embarcada no cruzador Indianapolis, chega à ilha de Tiniã. Sua carga explosiva é o urânio 235, que, contrariamente ao plutônio de Alamogordo, ainda não foi submetida a testes. Uma parte é transportada pelo Indianapolis. A quantidade necessária para completar a massa crítica chega a bordo de um C-54. Em Honolulu, os transportadores da bomba têm grandes dificuldades com as autoridades da base aérea, que, apoiadas nos regulamentos, não admitem que um grande avião atravesse o Pacífico com uma carga de algumas dezenas de quilos e insistem em carregá-lo até completar-lhe a capacidade. Um recurso a Washington os faz abrir mão da exigência, sem refrearem a indignação.

Diante da intimação, o governo japonês se divide. Togo observa que a linguagem com o Japão contrasta com a brutalidade dos termos ditados à Alemanha e que, mantida no texto, a capitulação incondicional é efetivamente abandonada. Assinala que todos os outros caminhos estão fechados. Encarregado de solicitar ao governo soviético acolhida ao Príncipe Konoye, com o objetivo de procurar os meios de restabelecer a paz, o Embaixador Sato não conseguiu ser recebido nem por Stalin nem por Molotov. Cessar imediatamente uma luta sem esperanças e apelar para a compreensão dos Estados Unidos é a única maneira de evitar a "destruição total", de que foi ameaçado o Japão por ultimato.

O romantismo nacional, porém, se rebela. O. chefe da intransigência é o Ministro da Guerra, General Anami. "Capitulação sem condições" - sustenta ele -, "é para o Japão um termo não somente inaceitável, mas inconcebível. Os Estados Unidos, de resto, não estão preparados para pagar o aterrador preço de sangue que lhes custaria uma invasão. Amolecerão ainda, concordarão com condições mais favoráveis, se continuamos a opor-lhes as resoluções do desespero."

A resposta do Japão é formulada a 29 de julho, por meio de um comunicado da agência de notícias Domei. O governo imperial decide "ignorar" o ultimato. Ignorar não é de todo repelir. Sob o ponto de vista japonês, a fórmula não fecha a porta, atenua a veemência da recusa. Para os Estados Unidos, ao contrário, ela contém uma significação de intransigência, de provocação, quase de desprêzo.

De Tiniã, chega a Potsdam, via Washington, um relatório: o 509.° Grupo compósito da U.S. Air Force está pronto, dependendo das condições meteorológicas, a realizar a missão de que foi encarregado. O comandante da aviação estratégica, Spaatz, recusou-se "a matar talvez 100.000 pessoas mediante simples instruções verbais" e exigiu ordem por escrito. Recebeu-a em 25 de julho, assinada por Stimson e Marshall. Todavia, ainda se trata de ordem preparatória. A ordem de execução somente pode ser dada pelo comandante-chefe das Fôrças Armadas, o Presidente.

Todas as disposições foram tomadas. Niigata, de pequena extensão, foi riscada da lista dos objetivos. Hiroxima continua em primeiro lugar, seguida de Kokura e de Nagasáqui. Um B-29 sobrevoará cada uma das três cidades, para confirmar a visibilidade. O transportador da bomba foi batizado de Enola Gay, nome da mãe do pilôto, o coronel Tibbets em pessoa. volta à crônica Dois outros B-29 o acompanharão, um cheio de cientistas, outro para eventualmente substituir o Enola Gay, na escala de Ivojima. A bomba, de aspecto bastante comum, antes feia, mede três metros de comprimento por um e meio de diâmetro, e pesa aproximadamente 4,5 toneladas. A montagem deve ser concluída durante o vôo, pelo capitão-de-mar-e-guerra William S. Parsons. A bomba será regulada para detonar a 600 m acima do solo. Ignora-se absolutamente o efeito de uma bomba atômica a tal altitude e naturalmente se o bombardeiro terá tempo de afastar-se suficientemente para não ser desintegrado.

Resta uma tarefa a cumprir: avisar MacArthur, que não foi informado do Projeto Manhattan mais do que o último dos seus soldados. Spaatz faz a viagem a Manila, duvidando da acolhida que o espera. Mas o grande Mac recebe sem reação a nova que vai privá-lo da conquista do Japão.

A 5 de agosto, depois de longa espera, a ordem de execução - ordem de Truman - chega ao 509.° Air Group. No dia 6, à 1 h 37 min, os três B-29 de reconhecimento partem de Tiniã. O Enola Gay segue-os meia hora mais tarde. Aos nove homens da tripulação regular, reúnem-se Parsons e dois outros técnicos. O vôo noturno realiza-se em condições ideais. Às 6 h 40 min, o Enola Gay começa a subir de sua altitude de cruzeiro, 2.745 m, para a altitude de bombardeio, 9.150 m. As 7 h 9 min, o B-29 Straight Flush anuncia que o céu está limpo acima de Hiroxima. A cidade aparece às 8 h 11 min, muito clara sobre os sete dedos desenhados pelos promontórios de Ota e intacta, tendo sido conservada virgem para o seu batismo atômico. Às 8 h 13 min 30 s, Tibbets dá a seu bombardeiro, o major Tom Ferebee, uma simples ordem : "Agora!"

A bomba deixa o paiol exatamente às 8 h 15 min 17 s. Aliviado de 4,5 toneladas, o Enola Gay dá um salto para o céu. A tripulação sabe que devem decorrer 45 segundos antes da explosão e que nesse instante o avião se encontrará a 19 km do "ponto zero". Cada homem conta : "42... 43... 44..."

Como em Alamogordo, um clarão prodigioso brota do coração da matéria, ofuscando os aviadores atrás de seus óculos de soldadores ao trabalhar com solda autógena. Depois, um imenso cogumelo incandescente eleva-se e expande-se no céu... volta à crônica

Truman está no mar, a bordo do cruzador Augusta. A Conferência de Potsdam terminou melancolicamente, na verificação de que um desacordo histórico está aberto entre os Estados Unidos e a União Soviética. O Presidente nada tinha de bom humor. Na véspera, da Sala de Comando do Augusta, dera ordem de empregar a bomba atômica. Passara a manhã à espera, espreguiçando-se no tombadilho, ouvindo a orquestra de bordo. A seguir, como bom demagogo, foi sentar-se no refeitório do cruzador e participar do almoço com a tripulação. Nisto, chega um ajudante-de-campo com um despacho, anunciando a explosão de Hiroxima: "Results clear cut successful in all respects. Visible effects greater in any tests... (Resultados precisos bem sucedidos sob todos os aspectos. Efeitos visíveis maiores do que em quaisquer testes)."

Em suas Memórias, Truman solenizará sua reação. Na realidade, ele cacareja de alegria. "Rapazes, nós lhe atiramos no coco um tijolo equivalente a 20.000 toneladas de T.N.T.!" Os marinheiros explodem em aclamações. Os dramas de consciência, a angústia e os remorsos misturados ao triunfo são uma falsa reconstituição histórica. É verdade que algumas pessoas, entre as quais Eisenhower, protestaram espontaneamente contra o emprego da bomba, considerando que isso não era necessário para pôr o Japão de joelhos. Mas a imensa maioria viu no aparecimento da nova arma simplesmente o fim imediato da guerra, e a conseqüente economia de sangue. Por dedução, os que deploraram seu lançamento contra Hiroxima teriam aclamado seu lançamento contra Berlim.

O rádio espalha a notícia. Antes de embarcar, Truman gravou uma mensagem anunciando que o mundo entrara na era atômica. Por aí e pelos comentários da Rádio de São Francisco é que o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Japão, Shigenori Togo, soube da natureza do projétil que acabava de ferir seu país. Informa seu colega da Guerra, solicitando-lhe pormenores sobre a explosão. Os militares, porém, são evasivos. Reconhecem simplesmente que os danos sofridos por Hiroxima são muito importantes. O comunicado, que eles esperarão o dia seguinte para divulgar, fala unicamente de um "novo tipo de bomba", a respeito da qual estão sendo feitas investigações. De Hiroxima restam somente alguns esqueletos de edifícios de concreto. A cidade começava seu dia de trabalho. Seguindo a regra, o alarma não foi dado para os aviões isolados que a sobrevoavam. Um clarão aterrador devorou-a, deixando atrás um incêndio colossal, atiçado e propagado em um segundo. Os bondes permaneceram cheios de passageiros calcinados, oprimidos nos bancos, ou amontoados em pé nas plataformas. Um vento de 1.200 km por hora pôs abaixo paredes num raio de 1.500 metros, indo estilhaçar janelas a 12 km do "ponto zero". Um ciclone de fogo, semelhante aos que centenas de bombardeiros atearam em Dresden, Hamburgo e Tóquio, redemoinhou durante seis horas. Em seguida, verificaram-se nos sobreviventes estranhos fenômenos : vômitos, diarréias de extraordinária intensidade, uma infinidade de pequenas hemorragias na boca e na garganta. Muitas vítimas portadoras desses sintomas agonizam. O balanço, que será levantado mais tarde, acusará 78.150 mortos, 9.284 feridos graves e 13.938 desaparecidos. Não computará os militares, em número de 40.000, cuja metade talvez tenha sido vítima da explosão. O Q.G. do 2.° Exército, a sede do Comando Territorial do Oeste, a escola e o hospital dos militares foram destruídos.

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La Seconde Guerre Mondiale
Raymond Cartier
- Librairie Larousse et Paris-Match, 1965 Augé,Guillon,Larousse,Moreau&Cie., Paris
edição em língua portuguesa: Ed. Larousse do Brasil, 1967.


  1. O texto original é de 1967 e, portanto, anterior à lei 5765, de 18/12/1971, que aboliu o uso do acento circunflexo diferencial, como em forma e fôrma, e outros. A ortografia foi atualizada, mas é possível ter escapado alguma palavra. Os nomes próprios estão como no original da equipe brasileira, que inclui quatro editores e 13 tradutores. Os destaques são meus. A obra, em dois volumes, tem 793 páginas.

  2. Raymond Cartier foi por muito tempo editor-chefe do Paris-Match.

  3. Hiroxima meu Amor - primeiro longa-metragem de Alain Resnais, com roteiro de Marguerite Duras. Nos papéis principais, Emmanuelle Riva e Eiji Okada, 1959.

  4. chapéus de vaqueiro texano - ref. ao filme Fail Safe, do qual não tenho mais dados. Foi exibido no Brasil por volta dem 1962. Na cena final o piloto do avião que vai jogar a bomba (por engano) troca seu capacete por um chapéu de cowboy, que tira do cofre do avião junto com os códigos... volta


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