auto-retrato [] Crônica do dia

Caça na madrugada

21/05/10

Os latidos ao longe me eram inconfundíveis. Com o tempo, aprendi a reconhecer a voz de meu cachorro. Nunca me enganei. Fui verificar por que latia com tanta insistência e estardalhaço à uma e meia de uma madrugada fria. Apesar da escuridão, de longe se sabia orgulhoso o cão com uma presa inerte aos pés.

Era um gambá, aqui mais conhecido como saruê. Era um dos grandes, mas já morto, com a língua para fora, pelo lado da boca, como é comum em desenhos caricatos. Era, também, evidente envaidecer-se o caçador com seu feito, como se exibisse a caça, maior do que um gato, com cerdas duras, eriçadas e um longo rabo careca. Além de feder.

Volta e meia o cachorro mordiscava o cadáver, talvez para se certificar que o fosse de fato. Fui buscar os petrechos necessários para dar destino ao corpo: uma pá e um saco plástico grande. Iniciava-se ali uma disputa. A cada tentativa minha com a pá, o cão intervinha, talvez por se achar dono do que perseguira e matara. Ele levava vantagem pois, com os dentes, pegava o bicho da pá e o largava adiante. O cheiro não parecia incomodá-lo. Deslocou, assim, a presa recém abatida por uns dois ou três metros. Falei mais áspero que saísse dali e ele se afastou.

O gambá é um marsupial, como os cangurus. As fêmeas têm uma bolsa onde os filhotes completam o desenvolvimento. Quando cheguei do lado de cá do fim do mundo, em meados dos anos setenta, eram muito comuns. Disputavam conosco os ovos das galinhas, mas não invadiam os sótãos, como hoje, quando são mais raros.

Uma vez, vi passar bem perto, uma fêmea com o rabo dobrado sobre o próprio corpo para servir de cabide a muitos filhotes, pendurados ao rabo materno por seus rabos. De outra feita, o caseiro de uma vizinha caçou um e acabei convidado para provar um guisado de gambá, aliás, de saruê. Fui, mas não comi.

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