auto-retrato [1987] Crônica do dia

Cardápio

18/10/06

Depois de setecentos quilômetros de estrada lamacenta, Donato avistou uma casinha naquele fim-de-mundo. À porta, a placa anunciava: "serfece refeissão" e ele faminto, pois o caminhão era tanque, mas ele não.

Depois de aliviar a bexiga e se lavar, sentou-se à única mesa e, para atendê-lo, chegou a senhora gorda, de narinas enormes e arrebitadas. Não perguntou o que Donato desejava e avisou: tem feijão. Ele não se importou e retrucou: e que mais? Ela, com a mesma voz mansa: tem feijão preto e feijão mulatinho. Ele insistiu: e que mais? E ela: é só, qual o senhor prefere, pode escolher. Ele: só feijão? Ela: é, só.

O silêncio durou algum tempo. Foi ela que o quebrou: então? Ele: eu detesto feijão... mas estou com uma fome! Ela: Bom, a outra parada, fica meio longe e ouvi dizer que a chuvarada levou uma ponte, mas parece 'eles' já estão lá para dar jeito...

Se você quer saber o final da história, bem como os possíveis efeitos colaterais de uma lauta refeição de feijão, preto ou mulatinho, quando se está faminto, apenas feijão, saiba antes que você, querido leitor, adorável leitora, está convidado ao traçá-lo, este final, pior a isto está intimado sob ameaças, penas, bicadas e cacarejos. De todo modo, há prazo definido para anunciar a decisão de Donato: a cor do feijão ou pé na estrada.

Sempre existe, todavia, uma tangente e Donato onde acordaria do pesadelo e deixaria tudo quieto e não compraria o caminhão e ficaria no recôndito de seu retiro, seu castelo, seu lar doce lar, sua ermida sossegada, à revelia da intimação e intimidação, que se faz na televisão, rádio, revistas e jornais e, à guisa de sugestão, almoce bela posta de robalo com salada caprichada e mais complementos ao paladar, olfato, olhar e, por que não?, tato e audição. Aproveite em boa companhia, pois há muito já se escolheu o feijão.

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