Carolina



30/03/98



Carolina estava quase feliz com seu novo carro . O "quase" ela atribuía, como de resto se tem atribuído a maioria das coisas deste ano, às travessuras de El Niño e seus tépidos banhos no maior dos oceanos. Quanto ao carro, apesar de novo, charmoso e cheio de frescuras, não era fresco sob o sol inclemente de um outono com jeito e suores de verão.

Por isso, Carolina mandou cortar fora a capota do carro! Só via vantagens em tal decisão. Poe exemplo: se fosse surpreendida por uma dessas tempestades intempestivas que inundam tudo de uma hora pra outra, e fazem até dono de frota de ônibus cogitar na instalação de periscópios em suas máquinas barulhntas, seria mais fácil escapar, a nado, para a superfície, sem a capota no meio do caminho, nem precisar de abrir portas sob a pressão das águas imundas...

Pouco importa se a história de Carolina é verdadeira ou não. É improvável, mas tenho visto cada vez mais o improvável acontecer e ela existe, apenas, para nos permitir imaginar uma reação absurda do fabricante do carro, a General Motors, por exemplo - já que esse nome, para nós, tem um timbre militar. Vamos nos permitir imaginar que a General vá reclamar na Justiça só porque Carolina modificou o carro que a poderosa General projetou e fabricou...

Ora, em qualquer tribunal, supondo simples como deveriam ser, os ritos dos tribunais, ela diria: comprei, paguei o com dinheiro bom, corrente e usual, obtido com meu trabalho e não como fruto de furto nem roubo. Assim, o carro é meu e faço com ele o que bem entender. Posso sacrificar em oferenda a El Niño, jogando-o de um despenhadeiro no Pacífico, por exemplo, ou transformá-lo num canteiro de flores, estacionado para sempre na casa de campo que não tenho. Ninguém tem nada com isso. O juiz, sábio ou ancião de qualquer tribunal, imagino eu, concordaria: "Certo, você comprou, é seu, a General, a partir do momento em que o vendeu, irá decidir o que fazer com o dinheiro que foi seu e você não poderá, sobre isso, dar palpite algum... A recíproca precisa ser verdadeira."

Pois bem, leitora antiga e improvável de uma crônica que muito falhou, se você está lendo esta bobagem deve estar usando - ou ter usado - algum tipo de software e, para tanto, concordou, ao menos formalmente, em mandar toda essa lógica cristalina às favas! Como eu, você - ou alguém por você - teve que "clicar" no botão "I Agree" ou "Concordo" ou "Aceito", do tal "programa de instalação" vendo-se forçada a aceitar cláusulas absurdas que, em resumo, garantem que o que você comprou não é seu. A propriedade do software que você comprou e, pelo qual pagou, afirmam as tais cláusulas, continua sendo eternamente dos "vendedores". Nem por isso você não poderá , em contrapartida, dizer como a Microsuave, ou outra do mesmo time, - imagine, ia dizendo da mesma máfia... - nem por isso você tem o direito de dizer como ela deve usar o dinheiro, que era seu e que você trocou pelo software, que acreditou estar comprando...

Aliás, muitos deixam claro, nas tais cláusulas, que não se trata de compra e venda, mas de mero "licenciamento" - isto é: você pagará uma espécie de imposto para usar o programa. Talvez eles argumentem que estão conformes ao mais antigo dos comércios ou à mais antiga das profissões... Paga-se para usar o corpo de uma mulher por um certo tempo, e nem por isso pode-se desmontá-la ou apropriar-se de partes dela... No entanto, uma prostituta ainda não pode, apesar das ovelhas, fazer milhões de cópias de seu corpo e distribui-las pelos quatro cantos da bola azul ou deixá-lo na Internet, para download... Por isso, é muito improvável que venha a ganhar alguns bilhões de dólares num ano ou, mesmo, duante toda sua vida, ainda que escolha um nome de guerra sugestivo como Bilgata ou coisa parecida...

Fico boquiaberto diante dos termos das tais licenças: "The Software contains trade secrets in its human perceivable form and, to protect them, you may not REVERSE ENGINEER, DECOMPILE, DISASSEMBLE OR OTHERWISE REDUCE THE SOFTWARE TO ANY HUMAN PERCEIVABLE FORM. YOU MAY NOT MODIFY, ADAPT, TRANSLATE, RENT, LEASE, LOAN OR CREATE DERIVATIVE WORKS BASED UPON THE SOFTWARE OR ANY PART THEREOF." Estamos às portas da Teologia! Deve haver formas que só os deuses podem notar nos softwares. Se levássemos a sério as tais cláusulas, se pensássemos meio minuto antes de clicar "I agree" se, ao menos, nos déssemos ao trabalho de ler toda aquela baboseira, tremeríamos diante da possibilidade de "reduzir o software a alguma forma perceptível pelos humanos" e violar assim a virgindade da pseudo-vestal-virtual, que se faz de pura para malocar segredos comerciais...

Deve ser por isso que John Walker também é explícito ao distribuir, de graça, muitos de seus excelentes programas: "This software is in the public domain. Permission to use, copy, modify, and distribute this software and its documentation for any purpose and without fee is hereby granted, without any conditions or restrictions."

Pouco importa se a história de Carolina é verdadeira ou não. Agora, ela sorri e canta em seu quase conversível! Só falta arranjar uma capota de lona... por enquanto ela carrega sempre uma barraca de praia no banco de trás...




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