auto-retrato [] Crônica do dia

Chuva de verão

24/11/08

Voou há meio minuto, foi-se o pequenino beija-flor. Caem, esparsos, os primeiros pingos. Dez minutos antes o Sol fazia o dia sorrir, apesar de plúmbeo o céu a uma parte. Com rapidez, as nuvens se desenovelaram e o dia escureceu. Um ronco longínquo deixa dúvida: é trovoada ou avião? Antes de voar, tudo convergia para o beija-flor.

Ele olhava para cima, para baixo, depois para a direita e para a esquerda - parecia examinar tudo ao redor. Seu vulto lembra uma gota com longo bico e um rabo de duas pontas, tão comprido quanto o corpo, ou mais. Contraluz, é apenas uma silhueta preta, mas ao se mexer, exibe um colete de reflexos verde-escuro, metálico. De repente, leva a pata direita à parte de trás da cabeça e coça com energia, lembrando demais o gesto de um cão. Surpreende ver um beija-flor se coçando assim...

Permaneceu no ramo morto, da árvore que se desmancha aos poucos, por longo tempo. Coroava o galho como o diamante ao dedo. Depois, se virou ali, 90 graus, apontando para o norte, agitou-se um pouco e partiu em vôo rapidíssimo para noroeste. Sumiu.

Logo depois a chuva chegou mais forte, o céu ficou mais claro e o chão se fez cheiro. As trovoadas retumbaram mais perto. Cada bicho procurou seu abrigo. Os trovões se agigantaram e rolaram a imitar o arrastar de móveis no céu da infância.

Meia hora depois a chuva acabou. O fim da intempérie deu início a cantoria de mil sabiás sobre as pétalas rasgadas e amassadas das flores de íris do dia, lavadas e destruídas em sua fragilidade pelos pingos grossos do temporal.

O beija-flor ressurgiu, ele ou algum parente, lépido e em vôo ágil visitava cada flor aberta de helicônia. O céu clareou e a fartura de tanta umidade a convidar o verão.

As águas que abençoam a vida podem, da mesma forma, a levar. O fim está implícito em tudo que começou.

 

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