O circo

13/11/97


Alegria não é prazer. Aliás, poucas coisas estão tão distantes entre si como essas duas. A maioria das pessoas corre furiosamente em busca de prazer, esquecidas do que alegria possa ser. Parece que a vida sem essa corrida frenética fica insuportável. São dois os alvos que se confundem: prazer e dinheiro. No início, busca-se dinheiro para suprir necessidades reais: comer, morar, vestir. Depois, busca-se por prazer e, por fim, por puro vício. Pode-se descobrir prazer em qualquer coisa, nas mais absurdas perversões. Pode-se ganhar dinheiro até chegar a ser o homem mais rico do mundo; e achar isso normal. Ter muito, ao arrepio de toda lógica, cria o impulso de querer mais e mais. O prazer não sacia. O dinheiro, tampouco.

Bonjour Satan! Il ne faut pas dire au demon "ça va", évidement. Il ne faut pas... bonjour, Satan. É, dona Sabrina, tem muita coisa que não se entende nessa vida, por que ficar com cisma logo com essa frase aí? E o resto? O resto é que é o pior... me explica o resto, que eu traduzo o que se diz lá. Senhores de bigodes pontudos e belas damas de seios de veludo, bem vindos ao nosso circo!! Com o patrocínio da Microentertainment Federal Business an Jokesforfun Corporation Inc. e o apoio cultural Bradescocala & Duckdonalditaú do Brazil, divirtam-se um pouco com nossos palhaços enquanto acabamos a divisão do butim... Música! Música, maestro, que soem clarinetas e tubas, trombones e mais metais, ritmo, maestro, que ruflem tímpanos e caixas, para ofuscar nossos gritos e rajadas... Bonjour Satan!

A platéia está repleta de crianças e pipocas. No picadeiro adultos palhaços se agridem com a arte do fingir e parecer. Um palhaço grande e gordo cai e rola na areia sem mar. As crianças sem entregam, como o fazem com tudo, com a inocência que depois haverão de perder. Riem e temem. Ali se preparam para os deliciosos prazeres do mundo dos adultos. Já não podem, como o poeta, "naqueles tempos ditosos" ir colher as pitangas ou trepar a tirar as mangas, pois vivem em caixinhas de sapatos empilhadas. Que número, por favor? Ah, o 1024? É no décimo, minha senhora, décimo andar. E os olhos da mais pequenina, arregalados, só fazem brilhar... O palhaço dá um chute no traseiro do outro e o derruba mais uma vez...

A alegria é uma dádiva que não pode ser buscada ou cobiçada como o prazer. As crianças e os bichos (e as plantas talvez?) têm a inocência que pode trazer alegria. A alegria é simples e está nas coisas banais. A criança aprende rápido a querer e cobiçar objetos de prazer. Ganha os fragmentos de prazer e quer mais - esta a mais típica característica do prazer: querer mais, sempre mais! - perde a alegria. A passagem é gradativa e, para a maioria das pessoas, parece natural. Hoje, me parece a maior de todas as tragédias que ocorre na vida de cada indivíduo. Não me olhe assim, Satanás. Se digo - e nem disse, só pensei! - que as mulheres poderiam me socorrer aqui - diabo! - é por causa de todo o simbolismo que há milênios se envolve e oculta no mito da virgindade. Sei, dona Eufrásia, os homens também perdem sua virgindade, às vezes, de maneira bem traumática, mas a virgindade é essencialmente feminina, por isso pensei em perguntar à Mulher se todo esse simbolismo, se todo tabu, se toda aura que gravita em torno do tema não poderia estar relacionado à perda da alegria. Assim, a mãe de Jesus, para os católicos, poderia perder tudo, até o filho, menos a alegria.

A capacidade de olhar para qualquer coisa como uma criança olha, sem nenhuma idéia ou opinião - qualquer coisa, seja a vovozinha, seja o lobo mau - se esvai. Depois, começamos a ter um julgamento pronto para cada rótulo, pronto também. Percebemos os veredictos já arquivados e classificados, plugue, use e abuse. Somos incapazes de entrar em contato direto e... (as palavras em inglês ou francês me parecem traduzir com mais exatidão: naive, naïf, mas não posso ter certeza pois o português é minha pátria...) um contato direto e cheio de candura e inocência com qualquer coisa (ingênuo tornou-se palavra ambígua em nossa língua). Nesse estado, nos tornamos presas fáceis para os traficantes do prazer...

Os palhaços saem numa marcha desengonçada do picadeiro. Os dois últimos da fila continuam a trocar tapas e pontapés... As crianças chegam ao máximo da excitação... As caixas ressoam frenéticas e os metais insinuam principiar alguma trilha que jamais começa... As clarinetas se impõem, com seu grito de guerra, segundos antes da lona desabar.

 


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