autorretrato 

Desvario

30/11/12

Três batidas na madeira da porta com o nó do dedo médio anunciaram a chegada de quem não era esperado. Apertou a tecla mute do controle remoto para calar gritos e xingamentos daquele momento do filme, levantou-se e seguiu em direção à porta. Não cuidou de olhar pela portinhola para ver de quem se tratava e, com gesto largo, escancarou a entrada para, surpreso, deparar-se com uma mulher. Jovem, mas não muito, bonita, de beleza discreta na ausência de adornos. Emudecido pelo espanto no gesto da boca congelado em meio, olhava a desconhecida e, por automatismo hormonal, aprovou suas formas, seu corpo, seus seios sem exagero, sua cintura, suas ancas, seus quadris e as pernas, canelas à mostra, tudo captado sem esforço, por um mecanismo aperfeiçoado através de milênios e independente de comandos ou deliberações. Seu cérebro apenas repetia monotonamente "quem será?", "o que quererá?", "por que aqui?" e enquanto o encantamento o paralisava, ouviu-a, com serenidade, anunciar-se: sou a Morte.

trecho de desenho de Apennak
trecho de desenho de Apennak

Ao ouvir estas palavras, ele se afastou, descerrando ainda mais a passagem, num convite mudo à Morte, a sua casa e seu ser, malgrado a antipatia que estes possessivos lhe causavam. A casa circunstancialmente ocupada por ele na ocasião, ser sem dono, anônimo, folíolo na floresta imensa da humanidade. Enquanto isso, a presença dela, morte ou não, discorria outras razões, provocava emoções antigas demais, desafiava instintos primevos e punha uma entrega serena ao ponto final face ao imperativo fundamental de perpetuação. A ara do próprio sacrifício se fundia em leito nupcial.

Sem batom, rouge, agora blush, nem pó de arroz, sem unhas pintadas nem nada ela resplandecia bela e atemporal. Calados, olhavam-se sem desviar o olhar, à Ruy d'Aurélio - "ternos olhares cruzados" sem tempo ou tique-taque. Fim.

November 30, 2012 11:51:31 AM GMT-02:00

É sempre bom acordar de um sonho desses... bj

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Desta vez não foi um sonho, pelo menos um daqueles que nos acontecem enquanto dormimos. Simplesmente liguei o computador para escrever outra coisa, durante a madrugada e, em vez de anotar o que agora nem sei mais, saiu-me este texto, corrente, direto, sem volteios nem maquinações. Outro poderia dizê-lo psicografado mas, não, eu mesmo o escrevi, embora não saiba por quê.


November 30, 2012 2:17:37 PM GMT-02:00

mamamia!
cê ta se superando a cada crônica. sensacional
FIM

      sem assinatura

Pois é, na hora também adorei este "FIM" com toda ambiguidade que encerra, mas acho que serás a única a percebê-la...

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