Devaneio de Nicolau

 

23/10/97

 

O telefonema foi longo e sussurrado... Ora, esqueço uma regra de ouro do jornalismo de antanho, quando ainda se queria fazer um jornal para atender ao leitor e, não às frustrações literárias de repórteres-redatores que, hoje, substituem as estagiárias, célebres enfeites e deleites de redações, na crista de onda do feminismo... Baniram o copidesqui junto com os últimos linotipos. Os corretores ortográficos dos computadores, incapazes de qualquer inteligência, toparam fazer o serviço, por um salário irrisório. O repórter, que precisava ser bom repórter, de repente se viu obrigado, também, a saber escrever. E não sabiam, como não sabem. E os redatores, que não precisavam saber fazer reportagem - alguns até odiavam ou eram absolutamente incompetentes para uma única pergunta - precisaram virar repórteres também. E os jornais se tornaram essa coisa insuportável de cada dia que, até na feira, já desdenham para embrulhar o peixe. Mas a regra de ouro, que ouvi das aulas que os secretários de redação davam, de tempos em tempos, naqueles tempos em que repórter fazia a reportagem, redator escrevia a matéria e o copidesqui era o guardião da língua. A regra de ouro era direta e simples: o leitor não tem obrigação de ter lido o jornal da véspera. Hoje, nem isso se respeita mais. Cita-se o jornal da véspera ou de um ano atrás, como se o leitor fosse um crápula, por não decorar feito computador cada besteira que o jornal diz. E louve-se a existência, ainda, de bibliotecas públicas, que arquivam e permitem a consulta aos velhos jornais. Sem elas, teríamos que pagar, e caro, para ver a primeira página com a foto famosa, distribuída de graça pela NASA, com a primeira mácula de uma botina na poeira de uma Lua sem vento! Mais tempo, menos tempo, algum luminar da política vai propor a privatização das bibliotecas também...

Volto pois, atento à regrinha de ouro, ao ponto de partida e, para os leitores que não podem imaginar que continuo a falar da inesperada visita do primo Nicolau, sugiro: aproveite o hyperlink no nome do primo para conhecê-lo. Posso agora dizer que o telefonema foi longo e sussurrado... Ufa!

Primo Nicolau apesar de negra ovelha era homem bonito e as mulheres, parece, nunca se importaram com a cor de sua lã. Viviam em enxame a assediar o primo. Ele não devia ser fazer de rogado, pois por três vezes, no curto tempo de sua visita, precisou interromper nossa palestra, sobre assuntos tão cruciais, para atender ao telefone... Voltava, a cada vez, com um sorriso nos olhos e os lábios presos, num risco duro, para não sorrir. Parecia sentir-se mais e mais à vontade. Reacendeu o charuto e falou: primo, tenho discutido a minha tese, com todas as minhas mulheres. Era assim cafajeste, era seu jeito de ser. Brincou um pouco com a fumaça e perguntou: Sabe o que essa aí me disse? Claro, eu não poderia saber. Disse - continuou - que não trai jamais. E sabe por que? E, sem esperar resposta, explicou: diz que, para ela, a única traição que conta é quando trai seus sentimentos. Disse mais, disse que uma mulher nunca trai um homem, a não ser, que continue com ele, querendo outro. Agora era eu que olhava fixo os olhos de Nicolau. Complicado o raciocínio da dama. Como é que é? Deixei escapar...

Primo Nicolau calou. Fumava devagar seu charuto, já pequeno, e parecia deixar de propósito um espaço para se pensar. Depois, disse com raiva, batendo na mesa: a merda é o ciúme! Perguntei: qual delas está aprontando com você? Ele fingiu que não ouviu. E daí em diante o primo começou a falar olhando aquele ponto do espaço onde nada se vê, como se eu não mais estivesse ali. Eu ouvia: ... o ciúme é a arma do Diabo para impedir um mundo só de amor... o ciúme é mais poderoso que qualquer outra droga, e vicia... vicia! Aí o perigo. Tem muita gente que não pode viver sem sentir ciúmes... são viciados... e o ciúme tem sexo também... ou gênero, se você preferir (estranhei aquele você, pois achava que ele ignorava completamente minha presença) no dicionário, é masculino. Mas na verdade, há um ciúme masculino e outro, feminino... e tudo, herança ancestral, atávica, marcado no cérebro mais antigo, mais recôndito e, por isso mesmo, mais difícil de desprogramar... o ciúme do homem, o medo do corno, a dor de corno, ele só vê se concretizar no ato sexual... Já o ciúme feminino é diferente, perdoa mais fácil um deslize na cama... primo, (aí olhou para mim e vi que estava voltando de seu devaneio) lembras o que disse da mulher e da traição? Tudo que falei sobre a Natureza tornar inevitável esse trair? Pois é, primo, essa mesma natureza torna mais fácil pra mulher aceitar uma traição sexual. O seu próprio sentir perdoa o encontro momentâneo, o sexo ocasional. O que ela não pode perdoar e alimenta seus ciúmes com todas as poções infernais é a traição da alma, a ameaça ao gostar, ao querer, à...

Neste instante o telefone tocou...

 



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