autor [1962] crônica do dia

Divagação

03/10/08

Ontem, vinha do norte um vento forte e constante e logo um céu plúmbeo se enovelava a toldar a abóbada celeste, pesado como se pudesse desabar sobre nossas cabeças - como o grande pavor na aldeia de Asterix. Céu plúmbeo! - o chumbo sumiu do cotidiano. Outrora, dele se moldavam muitas das artérias e veias de nossas casas. Criança, gostava de ver soldarem canos de chumbo, tubos maleáveis mas, acima de tudo, pesadíssimos. Potencial arma mortal, como o osso imortalizado por Stanley Kubrick ao som da abertura de Assim falou Zaratustra...

Divagava como barco abandonado às ondas enquanto caminhava de cabeça baixa para não pisar formigas. Saúvas que iam e vinham, apressadas, na mesma direção. É tempo da colheita interminável e quase todas ostentam sua bandeira verde. Um percevejo cruza o caminho. Por um triz, o esmagaria.

Dos canos de chumbo, ainda na infância, fazíamos goleiros para, inabaláveis, defenderem as metas nos jogos de botões. Numa lata velha, de leite Moça por exemplo, se fundiam sobras deixadas pelos encanadores - bombeiros, os chamávamos então - sobre uma fogueirinha no fundo do quintal ou na boca do fogão... Nela, os pedaços de chumbo se derretiam e, depois, escorria-se o metal para o molde: uma gaveta de caixa de fósforos.

Sempre do norte, o vento tecia buracos entre as nuvens escuras e tais buracos propiciavam holofotes a destacar recortes de paisagem. Ah, o ponto de vista dos condores é bálsamo para a alma... Alma? De que falo!?

Esvai-se a sexta-feira pelo ralo da semana e já se pressente o desaguar de dias na foz da próxima. Que importa agora a Bolsa, o voto, o contrato por assinar ou rasgar, a moça elegante, a outra bonita e tanta possibilidade adiada? Deuses da grande roda preparam seu cochilo e outras deidades, buliçosas, estimulam a imaginação. A gota rompe o espelho da poça...

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