autor sem barba - 1999  crônica do dia

Do sexo dos anjos

26/09/06


A mera coincidência deu bom-dia e me pôs diante de duas amigas e suas instalações, físicas, idealizadas ou, quiçá, impalpáveis e imateriais.

Uma as elabora com vídeos, músicas, luzes e ambientação cuidada - faz arte. A outra só quer educar. Decisão talvez tardia, pois a filha anda pela idade que Balzac celebrizou.

Para a primeira era fazer. Agora, se debate por que lhe cabe explicar. E, explicar obra de arte a torna desnecessária. Palavras, palavras, palavras - tantas, a lhe lembrar a toada das pamonhas de Piracicaba. Gosta de fazer. Detesta explicar.

A segunda, o fez por impulso, afinal, estava tudo ali: calcinhas, chinelos, sandálias... Da relação entre mãe e filha que moram juntas, difícil por fama e constatação, lhe parecia sair cada vez mais fagulhas. Discutiram, à tarde. A discussão ainda lhe doía. Não fez por aplauso. Tinha o pretexto de educação em lição oblíqua, cheia de humor ou sarcasmo...

A partir da porta de entrada, com a calma de quem arruma flores, espalhou calcinhas, chinelos, sandálias, sapatos e mais, largados, caídos, abandonados, em artística imitação da desordem, bagunça, da zorra que lhe parece sempre o quarto da filha.

Deixemos aos psicólogos de botequim explicar, interpretar, decifrar. Queria saber como a filha reagiria. Falei que, talvez, nem notasse, ou não se importasse, por ser ela, a mãe, dona da casa, e poderia fazer nela o que quisesse, como ela própria fazia em seu quarto.

Mas não posso omitir a pimenta malagueta: como o Criador, olhou e a achou sua obra imperfeita, não lhe parecia pronta. Faltava algo, que desse vida, um toque de realidade...

Para concluir a obra-singular, pegou do bom e velho fubá de milho, um pouco d'água e providenciou para que cada calcinha tivesse o aspecto mais real possível, de usada, com aquarelas de fubá feitas no capricho, que nem o diabo saberia explicar...


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