Enjeitados

25/01/16

Cheguei antes da hora combinada e me sentei em sólido banco de granito, numa sombra rala de árvore defronte ao outeiro da Glória e sua igreja bibelô. Da direita chegava um som de batucada. Nos demais bancos da praça, distantes uns dos outros, viam-se alguns desabrigados. Sobre um deles, em sombra espessa, uma jovem "moradora de rua" dormia profundamente.

Crescia o som da batucada quando surgiu um homem, meio calvo. Ele parou e examinou o cenário - minha presença parecia incomodá-lo. Afastou-se um pouco e se postou de frente, parecia nervoso. A seguir, começou a andar de um lado para o outro, atento à minha presença e, após algumas idas e vindas, parou bem perto da jovem adormecida.

Nisso, num banco ao lado, sentou-se um rapaz com boné e mochila. O homem junto à moça deitada, se inclinou e lhe acariciou a barriga nua. Continuava atento ao rapaz e a mim. Rodeava a moça, a tocava e me parecia falar-lhe. Em seguida se ajoelhou junto ao banco, de costas para nós e se inclinou sobre o corpo inerte.

A batucada assomou com estardalhaço, e muitos instrumentos além da percussão, pela rua do Catete. Do mesmo lado, em largas e rápidas passadas, apareceu um desabrigado alto e magro. Veio reto na direção do banco/cama da jovem e, ato contínuo, chutou com violência o usurpador. Um, dois, três, vários pontapés até derruba-lo no chão. Nenhuma reação. Durante a agressão o moço de boné gritava "dá na cabeça, dá na cabeça". O agressor, então, levantou com custo a moça que, uma vez aprumada, cambaleou e ziguezagueou em nítida embriaguez. Aproximou-se outro desabrigado e os três se foram.

O homem ficou caído, de barriga para cima, algum tempo, depois se ergueu e escapuliu. O bloco carnavalesco entrou praça adentro e um som mais forte de percussão provocou linda revoada de muitíssimos pombos em nossa direção.

Mon, 25 Jan 2016 14:31:56 -0200

Triste mas lindo! bj

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Sim, muito triste e testemunhar in loco o é ainda mais.


Mon, 25 Jan 2016 17:31:37 -0200

Fortíssimo, Clode. Ótima crônica. Obrigada.
Beijo,
M.

Sim, mexeu forte comigo testemunhar os múltiplos conflitos em cena.


Tue, 26 Jan 2016 17:20:44 -0200

Que barra no bela e pequenina igrejinha de glória...

Cuidado ai com essa redondeza....

De novo... Cuidado!!!

beijinho de fim de tarde paulistana....

      sem assinatura

A violência não é exclusividade da polícia ou de comerciantes de drogas...


Tue, 2 Feb 2016 10:24:04 -0200

IMPECÁVEL! escrita precisa e concisa
Apesar da cena aflitiva e infelizmente cotidiana, que me faz pensar no Papa Francisco dizendo que é preciso acabar com a cultura da indiferença. Sinceramente, não sei como transpor a indiferença que aprendi a ter diante de cenas como essa.

Aqui em Copacabana temos de "conviver" com muitos moradores de rua ou desabrigados ou mendigos.Quando os prédios põem o lixo na beira da calçada, à noite, eles correm para remexer, em busca de algo...
Nã verdade não ficamos indiferentes diante dessas cenas, mas inativos.

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