Enlatados

5/12/97


O vira-lata volta de suas andanças e só não traz um sorriso nos lábios por não tê-los e ter-se esquecido, a natureza, de pôr-lhe os músculos que fazem sorrir. Afora isso, chega todo estropiado, ferido, ralado, imundo, como convém aos da raça mais forte, mistura de raças, como qualquer um de nós. A mulher olha o animal, mede o trabalho que lhe sobraria, como o resto sobrava toda trabalheira que uma casa dá, põe as mãos nas cadeiras e fala com o bicho, como se pudesse ele entender - e o que sabemos, de fato, do que um outro, bicho ou gente, entende, ou não, do que lhe falamos nós? - com as mãos nas cadeira, disse ao cão: Bonito! E aí? Hem? Muita farra, se divertiu bastante? Arrumou umas cadelinhas jeitosas por aí? Então vamos já pro banho, senão nem vou poder cuidar desses machucados. O cachorro, deitado, se arreganhava todo e, mesmo deitado conseguia um jeito de abanar o rabo, que dizem ser o sorriso do cão e lamber, ao mesmo tempo, a ponta do sapato da mulher.

O marido olha a cena e comenta: pra ele você diz isso, né? O danado sai pra farra, passa duas noites sabe Deus onde, sabe-se lá com que tipo de cadela e, quando volta, nesse estado lamentável, você se desmancha toda em afagos e carinhos... Ah se em vez dele fosse o seu marido!... aposto que sua reação não ia ser essa... A esposa, ágil com as palavras assim como nas ações, rebateu como bola de pingue-pongue: só se ele fosse um cachorro!

Por quê? Por que, a mulher inventada de um suposto marido teria essa reação, como qualquer um de nós? E a suposta reação, que teria, se fosse o marido? Porque um cachorro é apenas um cachorro, se apressaria a responder o mais apressadinho. Mas a reação não seria muito diferente se, em vez do cão, fosse, digamos, um filho da mulher. Filho pode, marido não. Ou, se quiserem inverter os sexos, para não dizer que sou machista, se fosse uma filha - filha, veja bem, mais frágil e mais vulnerável! - fosse filha e também poderia. Poderia ir ao baile e dançar. Dançar que, como disse a outra, é a ante-sala da cama! A filha poderia ir às danças, madrugada afora, mas a esposa, não. É pena que não se possa colocar toda a ênfase, energia e, até, ameaça contidas naquele não... Por quê?

Fala-se do amor. Ontem, o mencionei de raspão. Em seu nome aceitamos os ciúmes como uma coisa normal, inevitável, como ter pêlos no sovaco ou um apêndice intestinal que pode inflamar. Alguns o dizem saudável até. Outros, prova de amor, como se amor fosse preciso provar! Agora, silêncio no tribunal que vai ser lida a sentença decidindo se há amor, ou não há... e uma senhora na penúltima fila deixou escapulir uma risada tão fantástica e sonora que fez tremer a abóbada do Tribunal... Aceitar o ciúme implica aceitar a posse. Sou dono do outro - cessa, de pronto, toda liberdade. O meu cão é livre. Meu filho, minha filha, também. Todavia, quem eu amo, não. E olhamos perplexos a contradição entre o que se sente e a razão.. Não é um tema banal, corriqueiro - está no cerne de toda tragédia, dos mais terríveis romances, das letras de música em todas as línguas...

Não, dona Sabrina, não estou dizendo que devemos dar banho e afagar e pensar as feridas daquele que volta das farras - seja ele o homem, seja a mulher -, como se faz com o cão, como se fosse um cachorro ou cadela. Mas, dona Sabrina, há milênios este conflito de sentimentos nos desafia a compreensão. Criaram-se regras para o jogo e transformam-se essas regras em leis. Agora, não precisas mais pensar nem compreender: consulta os livros, sagrados ou não. E além dos manuais, vieram rótulos, para dar uma aparência de ordem à confusão das prateleiras do supermercado social. E nas latas empilhadas lado a lado cada família se fechou, hermética, alheia ao supermercado, à cidade, à Galáxia, ao infinito... Mas o amor não pode ser enlatado. O amor não pode ter medo de assaltantes...




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