Era uma vez...

 

Quando eu era criança toda história começava assim. As que a babá contava, as que minha avó contava, as que ouvia de minha mãe ou na escola, da professora. Nem era preciso anunciar que se tratava de uma história, bastava dizer as três palavrinhas mágicas: era uma vez... E havia uma entonação cheia de insinuações e reticências na pronúncia das palavras mágicas. Elas soavam como mil promessas e tinham um poder instantâneo sobre a criançada. Fazia-se o silêncio. Todas as atenções convergiam para o contador de histórias.

Os pequeninos gostavam de histórias e, pelo que constato, continuam a gostar - só que hoje parece mais prático aos pais transferir essa tarefa básica da educação para os eletrodométicos. Aluga-se uma fita na videolocadora da esquina ou, simplesmente liga-se a televisão. Quando era criança a tevê ainda estava a caminho, distante alguns anos desse recanto exótico e remoto do planeta, quintal bom para o plantio de café e bananas. Um pouco de tabaco, talvez, mas sempre as simbólicas bananas, muito úteis na decoração de chapéus das cantoras tropicais.

Bastavam as três palavrinhas, com o tom apropriado, e tudo se tornava possível: levar um sapo e mais toda a bicharada para uma festa no céu ou celebrar o casório de uma doce barata com um rato guloso. Por isso, imaginei começar a crônica com a velha fórmula, como álibi e talismã, que me permitisse partir para um encontro num futuro ignorado com minha avó, a grande contadora de histórias de minha infância.

Aí, tentaria explicar à velha senhora como andam as coisas nestes tempos. Aquelas que vejo e outras, que me chegam, a cada noite, pelo noticiário da tevê. Falaria das doses homeopáticas de violência que destilam na hora jantar. Violência psicológica, violência na degradação de todo valor moral, ético, humano. Violência que acaba por se manifestar como violência física também.

Poderia ser uma maldade, servir todo o progresso da violência assim, de supetão, à boa velhinha, mas poderei: Ela viu muita coisa, afinal, ela viveu duas guerras mundiais e viu o marido falecer como uma das muitas vítimas fatais que a crise econômica, o famoso crash de 1929, fez por aqui. Quando era época, rezava pelos flagelados dos nordeste, que era como as vítimas da seca eram chamadas naqueles tempos. Por certo já tinha percebido que a solução só poderia vir dos céus, e não, dos políticos. Então, poderia tentar contar, para quem me contou tantas histórias, como andam as coisas no encerramento do século que ela viu nascer.

Poderia começar com uma boa notícia, para ela: o bicho-papão que tanto a apavorou, os comunistas, palavra que ela evitava até pronunciar, já estavam nos estertores da extinção. Havia um ou outro, dispersos pelos quatro cantos, sem qualquer poder. Seria difícil fazê-la acreditar que alguns padres, agora, são as estrelas de programas de televisão - colorida, vovó, tudo colorido como na vida mesmo - e disputam as paradas de sucesso com as atuais emilinhas borbas e caubis peixotos.

Difícil mesmo, não só para a compreensão da velha viúva, mas até para mim, para conseguir "explicar" ia ser o caso das nações mais ricas e poderosas se unirem com o fim de bombardear um pequenino país encravado naquela região, estopim de outras guerras mundiais. Difícil mesmo seria fazer com que a velhinha acreditasse que as crianças têm trocado livros e cadernos de suas malas - a mochila só virou moda há pouco - e levado para sala de aula revólveres e, em alguns casos, usado essas armas e matado colegas e professores.

Mais absurdo ainda, me pareceu, tentar fazê-la acreditar que há um macabro comércio de cadáveres e partes de cadáver, como num grande açougue onde se vendem fígados, corações, rins e outros miúdos, só que de gente, nem de galinha nem de vaca, de gente! E contar que entre os comerciantes estão enfermeiros e enfermeiras...

Nem foi preciso mais - desisti de fazer a crônica que pensei começar dizendo: era uma vez...

 

Publicada: segunda-feira, 17 de maio de 1999

 

 

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