desenho de Lu Guidorzi
basta um clique! 

berro - a parte inútil da vaca
Publicação esporádica destinada a se perder como o berro da vaca, que todavia muge, apesar da inutilidade declarada de seu berro.

 

 

Espantos

11/02/00

"aspas"

Um velho enxerga mais longe do alto de seus anos.

c.


O detalhe que ilustra este berro é de um tríptico de Hieronymus Bosch, de cerca 1504, que está, atualmente, no Museu do Prado, em Madrid. Uma reprodução pode ser vista, no WebMuseum. Apesar do nome, tem mais duas faces que completam o fecho e mostram o terceiro dia da criação. As outras partes são: O Jardim dos Prazeres Mundanos, no painel central, o Paraíso Terrestre na asa esquerda e o Inferno, na direita.

Olha-se à roda: tudo espanta! Há vários espantos: a admiração face ao inédito, às engenhocas paridas em abundância pela ciência e pela mão humanas. Existe também a perplexidade frente à ferocidade desse mesmo animal, o Homem, que supera as feras mais vorazes, mesmo os maiores predadores no paroxismo da luta, no ápice da exasperação. Dois, entre muitos espantos.

É parcial nossa visão. Raras vezes, sequer se concebe o poliedro além da face que, num dado momento, se vê. Diante da brutal violência e, pior, que cresce com fúria avassaladora, reagimos como crianças desnorteadas. Clamamos por um pai, por proteção. Repetimos slogans como reza e rezamos a diferentes deuses, conforme o adestramento de cada um ou tradição do lugar.

Gostamos do conforto e das mordomias da tecnologia: o automóvel, o computador, o celular, o microondas. Tevê por satélite, cabo ou fibra de vidro com tela plana de plasma ou cristal líquido - expressões que evocam contos de fadas. Gostamos da perspectiva de uma vida mais longa e de ter uma medicina cara e complicada, cheia de coisas e termos incompreensíveis para simples mortais, que repetimos como papagaio: ressonâncias magnéticas, tomografia computadorizada, engenharia genética, morte cerebral.

Bosch, Hieronymus

O desejo de bens terrenos, dos prazeres mundanos, torna o homem mais ganancioso. Os meios para obter as delícias terrestres assumem uma importância descabida e a meta de acumular riqueza, aguça a cobiça. A disputa cresce e com ela a violência com que se nega ao próximo - aquele que está perto, ao alcance das garras! - se nega toda migalha, em nome dos eufemismos corriqueiros nos cadernos de política e economia dos jornais.

Então, olha-se à roda e se queda pasmo com tanta violência. Protesta-se contra a violência que nos agride, quando ameaça o tranqüilo fruir dos prazeres mundanos e se sai às ruas ecoando slogans. A propaganda publicitária também gera violência porque impede a compreensão. Com slogans e publicidade eficaz foi feita a segunda grande guerra e, provavelmente, todas as outras.

 

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A Lusitana