A estrada

27/04/98



Quando aprenderemos a fazer o balanço e calcular o real preço que pagamos (em moeda muito mais valiosa que dólar ou real) por tanto conforto, tanta facilidade, tanta tecnologia, tanto entretenimento e todas essas coisas que nos consomem gota a gota a energia?

O automóvel, por exemplo, um maravilhoso meio de ficar entalado em congestionamentos e respirar os vapores sutis do que antes se chamava, na lata, cano de descarga e virou, por eufemismo e escapismo, escapamento, de uso comum em agências, oficinas, fábricas, etc.. O Aurélio, no entanto, preferia escape. Não tem escapatória: o cara compra um carro e, com ele, um monte de dores-de-cabeça. É essa a conta: gostaria de pôr num prato da balança esses problemas, que vamos comprando sem perceber e, no outro, tudo aquilo que pensamos que essas coisas nos trariam ou poderiam nos facilitar e com as quais continuamos a sonhar até morrer...

Um ótimo exemplo do absurdo em que transformamos nossas vidas se manifesta nas férias! Quem não percebe, mesmo que não queira perceber, a explosão coletiva singular, misturando ansiedades, sonhos, frustrações e sei lá que mais, que chega pouco antes dos ares quentes do verão? E não é só aqui, nos lados de baixo do planeta, não! Vê-se, na tevê, reportagens de engarrafamentos fabulosos em estradas da França, da Espanha, da Itália, dos lugares mais ricos. É uma doença planetária. Aliás, só os mais pobres parecem imunes a ela: não programam viagens de férias... O mal reflete apenas o quanto nos ocupamos com coisas que não nos agrada fazer. Quero poder caminhar por campos abertos, ensolarados e pisar descalço o orvalho da manhã. Quero ouvir os grilos à noite e o estalar de asas de borboletas misturado aos rumores do dia. Todos nós queremos, não apenas eu! Quero correr sem sapatos por areias virgens de praias desertas até não resistir mais aos chamado insistente do mar. Não apenas eu, todos nós queremos! Quero perder-me nos caminhos atapetados do bosque e sucumbir a sua majestade. Disputar com os insetos suas frutas pequeninas e embriagar-me de seus perfumes... todos nós, todos nós queremos.

Aí corremos a nos amontoar e empilhar em cubículos de cimento e ferro e areia, que nem praia tem. Decidimos andar cada um em seu carro e saímos todos mais ou menos à mesma hora, para ir mais ou menos ao mesmo lugar, sempre numa órbita invisível, que nos amarra, como mosca em torno da sujeira. Passamos a maior parte de nossas horas de vigília contando os minutos, os segundo, numa corrida louca, para resolver nossos problemas e os do carro, do computador, do telefone, do aparelho que quebrou, do outro que é preciso comprar, porque não há tempo para...

Estranha estrada que mal e mal se distingue! Aonde podeis nos levar? De volta ao ponto de partida? O alvo de tanta tecnologia e ciência é a casinha pequenina, à beira do regato ou a choupana de sapé entre os coqueirais e o mar? Lá, onde se precisa caminhar por um tempo não medido para o vizinho encontrar? Foi esse o sonho louco de Jeová ao plantar uma árvore da tentação? E, para certificar-se do sucesso de seu plano diabólico - se se pode adjetivar assim o Criador - ordenou à criatura, que crescesse e multiplicasse, e cuidou de providenciar, para tanto, os instintos, a inteligência e tudo mais... Onde os atalhos, Jeová, nesta sinuosa senda?!

A amiga me telefona e reclama: a firma em que trabalha, convoca todos os funcionários para uma aula. Sábado! Seria para aprender a usar o novíssimo, super-moderno e altamente computadorizado sistema de telefones, que a empresa comprou... Ora, seria melhor ir passear no bosque e usar pombos-correios! Repito: o homem mais rico do mundo afirmou ter mais de quarenta... não, dona Sabrina, não são quarenta lâmpadas, não, e nem quarenta ladrões, são quarenta computadores - mais de 40, ele disse - só para controlar as luzes de sua casinha. O número de lâmpadas ele não informou. Aí, alguém ao meu lado, é rápida: "Coitado! Lá em casa é bem mais simples: faço isso com um dedo só..."

Conheço um que pediu à avó a geladeira, pois a considerava um objeto de decoração, peça de museu. O cara adorava aquele motor redondo em cima de tudo. Quando sua moderníssima brastempetura pifou, foi a velha geladeira dos pioneiros americanos, que salvou mamadeiras e outras gulodices...

Poderia continuar por aí, pois de muitas coisas tomamos conhecimento e, depois, esquecemos. Por exemplo: existe toda uma requintada "arte" de nos fazer acreditar que precisamos de coisas absolutamente dispensáveis. Algumas totalmente inúteis ou, até, prejudiciais. Mais um exemplo: a "obsolescência", que fica cada vez mais "calculada" e assim por diante...

Este é o mundo que fazemos, esta a estrada que vamos construindo, dia por dia, milênio após milênio. Estranha estrada que mal e mal se distingue! Aonde iremos nos levar?



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