autorretrato [1988] 

Fantasia

28/10/13

A poeira cai ininterruptamente. Prova cabal da ação sem pausa da gravidade. Nada grave, a matéria continua com essa atração irresistível e recíproca por tudo material. Escolar ou de construção, todo material se precipita ao seu igual. Até mesmo delicados flocos de neve ou penas de gansos acabam no chão. Que pena, ou não. Rodamos nos limites da mente. Nossos voos se alçam, sim, mas na cercadura da razão, razão a nos atrair com a fatalidade da gravitação. O pó cai, mesmo enquanto se sobrevoam montes e nuvens em sonhos para olhar de longe o planeta e, ainda que deslumbrados, não cair ao acordar. Cai apenas poeira, pó a cobrir tudo e recobrir, assim, de terra a Terra com um manto fino de si.

Rasgam-se as nuvem na madrugada a anunciar que o universo não desapareceu: uma ou outra estrela brilha ainda o suficiente para sobrepujar a atmosfera ofuscante das noites urbanas. Perdemos o manto infinito de estrelas em troca de ruas iluminadas e letreiros e anúncios e mil formas feéricas de cobiçar a mente alheia. Astrônomos fogem para a cordilheira sul-americana em busca de ares menos poluídos e mais escuros...

Há constelações de grãos de pó sobre a mesa e poeira de estrelas na abóbada cujos limites extrapolam nossa compreensão. Ela pegou o pano de pó e, como não poderia apagar estrelas, limpou a mesa com tampo de vidro apagando suas constelações. Depois, pensou lá com os tais botões, companheiros fiéis do raciocinar solitário, que, se ela sempre filosofava enquanto cuidava da casa, talvez fosse uma filósofa, ainda que ninguém o soubesse.

desenho de Luciana Guidorzi - 1997
desenho de Luciana Guidorzi - 1997

Pela janela entreaberta, o sol forte da primavera destaca muitos grãos minúsculos a esvoaçar, visíveis apenas no rastro luminoso a rasgar o ambiente escuro. Depois, aquelas partículas tombariam como poeira, poeira a cair ininterruptamente.

28 de outubro de 2013 07:59

Obrigada, hj caiu como luva. Ou como grão de poeira a contar que a vida é assim e que o tempo passa.

bj
 Tati

Que bom que o tempo passa, mas amigos somos como amigos fomos, apesar da poeira acumulada. Obrigado eu pelas gentis palavras.


28 de outubro de 2013 13:28

adorei
"Rodamos nos limites da mente. Nossos voos se alçam, sim, mas na cercadura da razão, razão a nos atrair com a fatalidade da gravitação."
adorei tudo, alias, inclusive o desenho da LU

      sem assinatura

Apenas uma fantasia de uma cabeça desarrazoada... Que bom que você gostou.


30 de outubro de 2013 17:48

Que coisa tão bonita você escreve sempre...

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Há constelações de grãos de pó sobre a mesa e poeira de estrelas na abóbada cujos limites extrapolam nossa compreensão. Ela pegou o pano de pó e, como não poderia apagar estrelas, limpou a mesa com tampo de vidro apagando suas constelações.

      sem assinatura

Obrigado.

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