crônica do dia

flor de dois maridos

23/10/07

Segue o outono como a flor de dois maridos, ora de braços com o verão, ora com o inverno e, se domingo se bateu recorde de temperatura do ano e, em lugar de vento, soprava bafo quente, hoje se anuncia em folhas molhadas, ainda a reter a poeira de tantos dias de sede, dia chovediço.

Sobe a rua um homem jovem, de calça jeans, clara, justa como, antigamente, só as mulheres ousavam, mas a malha preta, de lã, é farta e folgada, combina com o cachecol e lhe esconde as orelhas e o nariz. Sobe em passos firmes, largos, cabeça abaixada, como se enfrentasse uma tempestade de neve, mas apenas venta um vento frio, penetrante. Na esquina, cruza um operário que chega à obra: boné vermelho, mochila azul escuro ás costas, sobre camisa amarela, braços de fora, bermudas de surfista verde folha e sandálias havaianas. Vacila o outono e os homens não sabem se abraçam o verão ou correm ao aconchego do inverno.

Na indecisão, a estação espalha carradas de flores. Ontem, em dia sem sol, se abriram cerca de duas dúzias de íris. Vi poucas abelhas nas flores... Hoje, foi a vez de quase quatro dúzias - estranha unidade de contar rosas! - faltaram duas. Há pés jovens e outros muito velhos e, por isto, flores em todas as alturas. As dos pés caçulas não me chegam à cintura; às dos mais antigos, só me é dado ver por baixo - estão em talos mais altos que eu.

Paro. Moveu-se? Paro. Olho sem pressa, como fazia, criança, para ver o ponteiro de minutos andar. Demoro-me com o desabrochar de uma pétala. Desprega-se de outra, se espicha... se espraia. É quase imperceptível. Gesto muito sutil. Qualquer interferência impedirá à flor sua forma perfeita, mesmo outra pétala a se abrir na flor ao lado.

Foi aí que o Primo Nicolau resmungou: o outono pode ter quantos maridos quiser desde que eu continue o único no harém lá de casa...

 

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