Fragmentos

28/11/97


A mim cabia escolher e a escolha, que eu tinha imaginado óbvia e fácil, agora me parecia insuportável. Mas eu tinha tempo. Ouvi cada uma. Falei com cada uma. E uma e outra e cada e todas me falavam mudas com seus olhos de mulher. Eu entendia cada olhar com a certeza de que texto nenhum é capaz. E cada qual segundo sua beleza, sabedoria e mistério, desafiava alguma verdade dentro de mim.

Continuei, uma por uma, sem pressa: o tempo já não importava mais. Para cada uma um olhar, uma palavra. Cada qual saía e um spot se apagava, até a penumbra ameaçar a cena outra vez. Só dois fachos azulados materializam no palco você e você. Eu lá, parado perto da ribalta, de costas para uma platéia que não tinha certeza, sequer, de existir, precisava escolher: você ou você. Senti o prazer sádico de ser dono do tempo. Com certeza é o que sente o diretor na moviola, decidindo a sorte de seu filme, gozando o suspense que sabe que provocará. Sorri.

A escolha não me interessava mais. Brinquei de imaginar como e quando representar meu papel. Podia partir com passos firmes, cada vez mais rápidos, em direção a você. Parar de repente. Fingir vacilar. Olhar um tempo para você. Mudar o rumo... Não. Seria melhor começar a caminhar indeciso, com passos de bêbado que quer trilhar a bissetriz, mantendo sempre a mesma distância de você e de você. Aí parava. Você à minha direita, você à esquerda. Olho para uma, depois para a outra. Aí - quem sabe? - tropeço e caio e o público cai na gargalhada...

Oh deuses, por que não soube entender os sinais? Que possam essas chamas, consumindo-se em si, fazer correr nos subterrâneos meus, lentamente como da ferida no lenho, o âmbar translúcido da compreensão e despregar meus olhos, cegos há mil milênios, para enxergar a beleza do feio e o horror insuportável da aparência do belo e, olhando através de coisas e tempos, que eu possa ser mais forte que as forças somadas da dispersão de tanta energia, da dissolução de todos os sonhos, sonhados em todos os tempos. E que a água puríssima, vivificadora, fluindo em nossos subterrâneos, buscando as gretas minúsculas da rocha, tenha certeza da fatalidade de ter que um dia aflorar.

Corre água sagrada da deusa morena - soberana dos deuses que habitam em mim. Corre mil vezes mil tempos, até amolecer a crosta sedimentada, geração após geração, para que a morfo inacreditável possa eclodir da crisálida e voar azul no azul de todos os céus. Voa, luz metálica de meus sonhos para tornar possível, do alto, acreditar na mentira de que o azul do céu copula num abraço infinito, no horizonte improvável, com o azul do mar, mentira também.

Voa, faísca efêmera de todos os azuis, sobre as matas prostituídas pelos escombros do templo erigido na brutal beleza do granito! Voa alto, muito alto, para não ver as feridas na pedra e no mar.

Assim, vi diante de mim apenas você e você. E o menino que a mulher trazia pela mão, com seus olhos enormes de criança, muito pretos, olhou com a placidez da inocência você, e você também. Não sei explicar, mas sabia que eu era aquele guri, que caminhou tranqüilo, sem a menor indecisão e escolheu você. Te envolveu com os braços pela cintura, e te apertou muito e forte. E já era eu quem te abraçava quando a abóbada ruiu.

Descansa em paz, mestre Affonso Domingues, foi outra a abóbada que caiu. A do Mosteiro de Santa Maria da Vitória- da Batalha, em Aljubarrota, certamente ainda está lá...

Primeiro, o reboco se despregou, como se as musas dos sonhos de Visconti estivessem muito cansadas de estar tanto tempo ali. Depois, cheio de raios e curtos-circuitos, o Teatro desmoronou. E continuamos abraçados, alheios a tudo ao redor de nós, como de costume e quando a poeira por fim assentou, vi que as areias se estendiam em todas as direções arrumadas pelos ventos em dunas maravilhosas, penteadas grão por grão.

Nenhuma pegada das mil caravanas que certamente passaram por ali. Nenhum vestígio de qualquer vida, embora minha cabeça teimasse em pensar que, com toda a certeza, nas entranhas daquelas areias algum tipo de inseto, de alguma forma conseguia um modo de se alimentar, tirar água do ar seco e encontrar uma companheira que, mais tarde, deixasse seus ovos confundidos com os grãos de areia, antes de morrer.

Por não ter rumo ou destino, caminhei em direção ao sol. Olhava para trás e me culpava por estar maculando com meu rasto a paisagem impecável. Era muito cansativo andar naquelas areias quase líquidas de tão finas. Comecei a sentir a angústia de não conseguir chegar, embora não estivesse indo a nenhum lugar. Deu medo de morrer ali, sem poder avisar ninguém, de simplesmente desaparecer confundido com os grãos de areia e os ovos de insetos que certamente sobreviviam ali. Achei que estava ficando louco, quando ouvi nítido o estourar das ondas e o barulho da espuma desaparecendo na areia. O mar! Agora tinha onde chegar e temi ainda mais sucumbir ali. Tanta sede e tanto suor. O sol do meio dia não me orientava mais. Senti a boca seca, os olhos ardendo e a angústia pavorosa de não conseguir. Farejei. Nenhum cheiro, mas ouvia sempre, inconfundível, o canto do mar...


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