à guisa de ilustação

Fúria Divina

Conta-se que Jeová, apesar de onisciente e onipotente tinha lá, de tempos em tempos, suas crises de melancolia diante da imensidão de sua solidão. Tivesse achado sua obra imperfeita e teria para o incomensurável da eternidade o entretenimento de reparar aqui e ali cada coisa que pudesse melhorar. Quem sabe, até, com o deleite tão humano de poder experimentar e errar, para depois procurar tirar dos erros proveitosas lições. Se tivesse sido menos afoito, sem querer ver tudo pronto em menos de uma semana, poderia ir fazendo as coisas aos bocados, hoje uma nova borboleta, quiçá de cores psicodélicas, amanhã, um fruto inédito com sabor misto de carambola e abacaxi, por exemplo, na embalagem de uma banana, e assim por diante. Mas não, sua obra prima, primeira e última, era a seus olhos livre de qualquer defeito. Sem chance de reclamações...

Assim, quando sua solidão crescia a ponto de incomodar um deus, mandava chamar Satanás para dois dedos de prosa, um costume antigo. Importava a prosa, é claro, pois em sua onisciência sempre sabia de tudo e nenhuma história, nenhum caso, poderia trazer novidade. Mesmo assim, gostava de perguntar como iam se saindo seus filhos diletos, esquecidos há milênios na pequenina bola azul, ainda mais porque incumbira o próprio demônio de atazaná-los com mil e uma tentações... Não nos cabe compreender as razões de um Criador, se razão houver.

Outro dia, veio o diabo e, diante da divina curiosidade, ponderou:

Se digo que lá vão bem as coisas, o que pode isso significar: que vão bem em qual dos caminhos? No meu? No seu?

Ora, há dois mil anos mandaste vosso filho semear palavras, deixá-las como migalhas que, ao cair, marcam uma trilha. Palavras, no entanto, pouco ou nada podem fazer. Foram devoradas pelos vendilhões do templo, dos templos, de todos os templos que proliferam e pululam como o mofo na podridão... Os falsos profetas repetem, como os papagaios, palavras mortas, às quais emprestam significados de ocasião. Pinçam uma única frase, para depois brandi-la como espada ou agitá-la como estandarte do que nunca significaram...Vão bem as coisas na bola azul... bem demais!

Desmilingüi-se aquele que, por tantos séculos, foi o sustentáculo mor da discórdia: a nação. A "pátria" importa cada vez menos. A vaidade, o egoísmo e a ganância substituíram os pedaços coloridos de mapa pelos logotipos e marcas de poderosas firmas que, como a peste, aprenderam a ignorar fronteiras em busca dos cassinos espalhados por todo o canto, ignorando bandeiras ou outras considerações heráldicas. Como sempre, poucos que se assenhoram dos trinta dinheiros, que multiplicam como ilusionistas de um novo símbolo, que já não corresponde ao suor do rosto, da mesma forma que a Mulher é dado dar à luz sem dor! Vossos filhos se debatem entre na contradição, entre o temor de perder uma vida futura, eterna ou cíclica e os prazeres multiplicados pelos truques dos ilusionistas marqueteiros, prazeres que prometem encher aquela vidinha minúscula, efêmera, desarrazoada, que a razão não pode jamais alcançar...

A esta altura, o Criador interrompe a verborragia:

Basta de lero-lero. Diga: o Homem, o ser maior e imortal, do qual cada mísero indivíduo é menos que o folíolo de uma milenar e majestosa árvore, esse, mudou?

E Satanás, antes de falar, ergue as sobrancelhas e inspira fundo:

Nada. Nadinha. Milhões de anos e o rugido do animal em suas entranhas se afigura até mais forte, vós bem o sabeis. A busca do prazer a qualquer preço fez do sexo uma espécie de jogo, como o jogo-da-velha, amiúde desprazeroso. Jogo onde a vaidade fala mais alto que os instintos mais banais, os impulsos mais animais... Os boticários apregoam pílulas em nome do êxtase, da grandeza da ereção, da possibilidade de uma fornicação sem prole e muitas outras, com promessas de "maravilhas" para todo gosto, tudo em nome do prazer... Outros "boticários" cuidam de outras drogas...

Foi quando a campainha do telefone cortou o devaneio e uma voz bem humana e conhecida me perguntou, do outro lado da linha:

- Já notou como Deus anda zangado, ultimamente?

 

Composto no Word 3.1 para DOS, num IBM AT 286 em September 14, 1998.


Publicada em 22 setembro de 1998

 

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