Futuro do subjuntivo

30/09/97


Pior do que dizer certas coisas é escrevê-las As palavras se desmancham no ar, ao contrário das coisas sólidas, parte das quais só desmorona mesmo nos tratos digestivos e em atmosfera outra, que não o ar. Enquanto ar, as palavras estão fadadas, inexoravelmente, a desmilingüirem-se. Desaparecem como a espuma na praia do mar. Mas quando se tratam de letrinhas, o único aglomerado que não compromete é o da sopa. Apesar disso, há quem escreva, com todas as letras enfileiradas uma depois da outra e com todos os chapéus, penduricalhos e demais adereços: "a Rede tornou-se a maior prova concreta, no presente, de que o futuro chegou - embora não seja exatamente como o imaginaram." Oh, dona Sabrina, todos sabemos não ser a senhora a autora, inclusive, porque está assinado. Não interessa o nome dos autores, não é disso que se trata. Sim, dos autores! Ia esquecendo de contar: são dois os responsáveis, duas pessoas assinam o artigo que, parece, é de fundo. A senhora, hoje, está impossível - não foi escrito no fundo do quintal nem no quartinho dos fundos! Pois é, dois articulistas. Pelos nomes, um homem e uma mulher. O que prova que um casal pode fazer muito mais coisas do que supõe nossa filosofia sempre vã e, às vezes, vão fundo...

A frase está na primeira página de uma dessas revistas sobre Internet, que infestam as bancas de jornal. Abstenho-me de mencionar outras pérolas. Fico com esta: "a Rede tornou-se a maior prova concreta, no presente, de que o futuro chegou - embora não seja exatamente como o imaginaram." É fantástico, não acha? Quer que repita? Diante de tal afirmação ergue-se uma multidão de perguntas. Pra começo de conversa, qualquer futuro que chegar, deixa de sê-lo, no ato. Se for futuro, é porque não chegou. Mas, aceitemos que o futuro do casal é um elemento de retórica, uma imagem poética. Falam, no presente, do que foi futuro no passado. Aparentemente, querem dizer que está aí uma nova tecnologia, embora, não seja aquela imaginada por quem tinha capacidade de imaginar e de cuja imaginação brotou, de um jeito ou de outro, toda a tecnologia que aí está. Certo dona Sabrina?

Aqui, um parêntese: não tem a mínima importância, para mim, se quem imaginou o futuro foi uma pessoa e quem imaginou a tecnologia, outra. Não consigo abdicar da idéia de que somos, a humanidade, um só e imenso ser, do qual nós, indivíduos, não passamos de efêmeras "células". É assim que falo do Homem, com esse agá maiúsculo, e não estou a falar deste ou daquele sexo. Vêem o agazão, quando falo? Fecha parêntese. Mas deixemos de lado a revista, pois não era disso que queria falar. A Internet pode virar puro entretenimento, como a televisão e se tornar uma coisa até mais insuportável que ela. Pior, capaz de mais imbecilizar. Na minha juventude um grande cronista (e humorista) o Stanislaw Ponte Preta, o Sérgio Porto, jamais chamava a tevê pelo seu nome. A tinha batizado de "maquininha de fazer doido" e, convencido dessa eficácia do aparato, só a tratava assim. A "Rede", como diz o casal, não é mais "a Rede de redes de microcomputadores, interligando uma teia mundial de cérebros.", como afirmam. Se torna, cada vez mais, uma maquininha de fazer cogumelos - pessoas que passam a se relacionar apenas com as idéias das coisas e, para as quais, pouco importa se as coisas, simbolizadas por aquelas idéias, existam, ou não.

É irônico até, pois queria dizer, apenas, o quanto me divertiu a chuva de mensagens que, hoje, inundou o Mané. É inesperado e foi, hoje, cheio de humor. Mas, ao dizer isso, me confesso o cogumelo mor... Aí, esbarro naquela frase onde a prova concreta é um mundo virtual - de amizades virtuais, da realidade virtual, de passeios virtuais, etc.

Outra hipótese, ainda mais esdrúxula. O casal de escribas poderia já estar, de fato, no futuro. Talvez nos escreva de lá, quiçá, do ano 2019. Ora, de um ponto de vista relativista, a frase se torna menos absurda. Quando dizem que o futuro já chegou, no presente - apesar de um tanto diferente do que imaginaram - haveria uma equivalência matemática a terem eles chagado no futuro de nosso presente, que é, para os dois, o passado. Pois, como diz o próprio autor da Relatividade, "a teoria não deve contradizer os fatos empíricos." Como se sabe, não existe um sistema de coordenadas privilegiado e se num sistema inercial... bom, deixa pra lá! Eles provavelmente nos escreveram do futuro do subjuntivo, através da prova concreta noves fora, zero, o que torna presente, no passado abstrato, a rede de pescador, que se joga no mar de ressaca e trazia de volta, embora um pouco diferente, tudo que se queira imaginar...


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