desenho de Lu Guidorzi
basta um clique! 

berro - a parte inútil da vaca
Publicação esporádica destinada a perder-se como berro de vaca que, todavia muge, apesar da inutilidade declarada de seu berro.

 

A guerra

10/10/01

"aspas"

"Instintivamente, levei as duas mãos para 'acalmar' a minha perna esquerda, e foi então que a vi em pedaços. A calça no lado esquerdo tinha desaparecido. A visão foi terrível. O sangue brotava como de torneiras. Depois do joelho, a perna se abria em tiras, e um pedaço largo de pele, retorcido, estava no chão. Olhei em volta e não achei meu pé. Fiz um balanço rápido da situação. Senti a cabeça muito quente e um fio de sangue no rosto. A perna direita, empapada de sangue, parecia ferida, mas estava com a perna da calça e com a bota - senti certo alívio."

José Hamilton Ribeiro,
revista Realidade, (n° 26, maio de 1968)

A guerra não está só no Afeganistão e em dezenas de outros conflitos com menos ibope - está dentro de nós. Isso não é frase de efeito nem de caráter religioso. É possível conferir em si, principalmente com essa guerra cinematográfica, servida todo dia como doutrina, em doses homeopáticas.

Pouco importa o vulto das questões econômicas envolvidas - preço de propaganda sempre exorbita com a desculpa de incluir o imponderável e o incomensurável - importa é que cada bomba, se fosse mesmo inteligente iria cair em alto-mar bem longe de cardumes, baleias, embarcações e tentar se afogar sem explodir. Bombas inteligentes! Inteligência artificial: computadores, carros, absorventes, objetos inteligentes e homens burros! Cada bomba pagaria três milhões de refeições nesses restaurantes populares como o da Central do Brasil. Isso é só o preço da bomba, só o bisturi do doutor Kill Dare.

foto de Keisaburo Shimomoto

De Saigon, a agência France Presse enviou a notícia: "O jornalista brasileiro José Hamilton Ribeiro foi ferido ontem ao explodir uma mina quando seguia as operações da Primeira Divisão de Cavalaria dos Estados Unidos". O fotógrafo japonês Keisaburo Shimomoto estava junto, socorreu o repórter e documentou o fato para a revista Realidade (n° 26, maio de 1968). Morreu na mesma guerra, três anos depois.

Alguns profissionais da notícia funcionam como gramofones, ou secretárias eletrônicas, para usar um termo mais evocativo e as próprias notícias se repetem como gravações, mas a morte tem cara. São filhos, maridos, namorados, mulheres, filhas e namoradas que morrem. Não números, estatísticas e diagramas, por mais fascinantes e mirabolantes que sejam os recursos dos computadores e limpas como salas prontas para cirurgias as imagens das tevês.

Na hora da morte não há tempo para considerações teóricas. Morfina fornecida por enfermeiros ou produzida no próprio corpo aplaca a dor física de mutilações, feridas, queimaduras. Talvez também entorpeça o sofrimento que não é físico, do qual fugimos vida fora. Não são os outros que fazem a guerra, somos nós. Nós somos o Homem, a humanidade que há milhares de anos mata por idéias, por palavras revestidas com rótulos de filosofias, religiões. Idéias com promessa de felicidade, sempre para depois, vivo ou morto.

 

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