Hábito

 

O hábito, não só faz o monge como as freirinhas todas que o mosteiro precisa.

Eis-me diante de um dilema daqueles que parecem só existir para mim: as coisas que se repetem dia após dia acabam com toda possibilidade do novo. Certo? Parece mais ululante que todos os óbvios do Nelson, ao primeiro olhar. O tédio da rotina, a monotonia da repetição nos transformaria em máquinas, estéreis. Aí, na minha loucura privada, me pergunto: e um dia após outro, sempre com uma noite no meio? E o alimento de hoje, que não sacia a fome de amanhã? E a sequóia que já perdeu suas folhas em milhares de outonos e viu surgirem outras, novas, em outras tantas primaveras?

Pergunto: e o hábito de se alimentar, o hábito de esvaziar os intestinos, o hábito de dormir a cada noite, ou a cada manhã, dependendo da loucura de cada um? Estar vivo não é repetir uma série de ações, sempre as mesmas, desde que nascemos? Parar, é morrer. Passa-se para o time que, na escola, chamavam de inanimados. A pedra não sai a cata de comida e nem por isso é invejável por não ter excretas a eliminar. Cada louco com as loucuras que, só para ele, parecem absolutamente normais!

A leitora antiga já se pergunta onde este intróito pretende levar. Pois bem, aqui está: o velho hábito de mandar cartões de "boas festas" e as conseqüências que um vício tão banal pode ter para os menos equilibrados. No início, simplesmente ignorei todos aqueles velhos de barbas brancas e trajes vermelhos. Tudo me soava falso, forçado, mero ritual imposto e, grosseiramente copiado de gentes que tinham solstício de inverno, quando o nosso era de verão, e vice-versa! Depois, quando as minhas barbas também começaram a branquejar, "abrandei meu coração", como diziam os árabes, e deu vontade de mandar "uns cartões"... mas resisti a celebrar um culto religioso que não era meu. Em vez de Natal ou Ano Novo, decidi mandar mensagens de solstício de verão. Afinal, a diferença era só de uns poucos dias...

Por coincidência, foi na época de meu primeiro fax. Era divertido mandar mensagens em forma de poemetos por fax. A cada fim de ano, um novo poemeto, uma tímida oportunidade de insinuar: "olhem, o bicho arredio! Vejam, não é bem assim..."

Aí, da noite pro dia, veio a Internet e o fax, de repente, pareceu mais antigo que máquina à vapor. Logo as páginas coloridas e o encanto da novidade se tornaram estímulo para um "cartão" de solstício de inverno também. Por que não? Mais um pouco e já me perguntava - e os equinócios, por que essa discriminação? E logo, o maluco que se negava a mandar cartões de Natal, enviava, quatro vezes por ano, mensagens com o pretexto da passagem pelos vértices da elipse, pelos pontos chaves da curva que o Planeta traça, há bilhões de anos, zumbindo de amores pelo Sol.

Hoje é o solstício de inverno, às 16 horas e 50 minutos, no nosso horário, do leste do Brasil.

 

Publicada Segunda-feira, 21 de Junho de 1999

 

 

|home| |índice das crônicas| |mail| |anterior|

 

 

187