1990 Crônica do dia

Hora do almoço

10/11/06

As palavras são tardias. O ser humano só as conquistou muito depois de passar por todo tipo de desafio e os superar sem ter palavras para os contar, tinha apenas gestos, expressões faciais e, talvez, grunhidos. Como muitos animais, podemos interpretar rápida e instintivamente o que vemos, em particular, na nossa espécie. O que quero dizer é que nos momentos críticos, decisivos, as palavras são a cereja do bolo, o alfinete da gravata. Chegam tarde e trazem o fato com gosto de requentado pois, além do que vemos, tudo o que não vemos já nos abalou e já deu a notícia que virá.

Ela chegou e entrou no escritório sem bater ou perguntar se podia. Foi direto, sem alarde ou palavra e parou ao lado da mesa dele. Sem preâmbulo, perguntou de modo a só lhe deixar uma possibilidade de resposta: você pode descer comigo, agora. Desceram. O elevador, de portas sanfonadas douradas era lento. Os andares passavam em câmera-lenta a um som ritmado de catraca: patacle... patacle... patacle...

"ela tinha os olhos secos e o rosto sob controle"
"ela tinha os olhos secos e o rosto sob controle"

Na rua, o sol ofuscava. Muitas pessoas saíam dos prédios - era a hora do almoço. Eles se afastaram do prédio em silêncio. Embora chorasse, ela tinha os olhos secos e o rosto sob controle. Depois de alguns passos, pediu um lugar tranqüilo para falarem. Mais alguns passos e desandou a falar. As palavras lhe fluíam como represa que se rompe. Contou, em enxurrada, que acabara de se separar do marido, que tinha sido terrível a discussão e tudo que nos parece inédito por mais que se repita sempre igual há séculos.

Ele ouviu sem palavra, atento com todo o resto muito mais do que com os ouvidos e, quando enfim chegaram a um fim de caminho bucólico, já estavam por terra barreiras e detalhes, miudezas que as águas levam e lavam e o choro, afinal, brotou. Tímido, de início, franco e abundante depois. Beijaram-se. Só aí deu fome...

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