Inédito

 

Chega o dia em que o compromisso da crônica nossa de cada dia chama e você, diante do chamado, olha à roda, busca na memória, a sua e a dos discos magnéticos, rígidos ou não, e de tudo, nada parece digno de ser mencionado.

Um dia atípico, cheio de circunstâncias, locais e, principalmente, pessoas inéditas... mas ao dizê-lo já me pergunto se, de fato, eram inéditas ou esse novo caberia apenas às aparências Eram outros nomes, endereços, títulos e coisa e tal, mas a essência, os móveis subterrâneos, as motivações ocultas os sutis jogos de vaidades, temores, dominação etc., tudo isso torna muito temerário falar do inédito.

O Viaduto do Chá pareceu-me mais largo, com raros camelôs e sem aquela multidão que se ali deslocava, permanentemente, como rampa do Maracanã em dia de jogo do Flamengo. O camelôs vendiam envelopes, escovas de dentes e pilhas. Só! Tudo, por um real. Quarenta envelopes, seis escovas ou dois pacotes de quatro pilhas, cada. Não vi ninguém comprar.

Um senhora, com um estetoscópio e um aparelho para medir pressão arterial, tentava timidamente obter a atenção de algum passante. Parei para esperar o sinal, que os paulistas chamam de farol, e não a vi obter sucesso. Era muito tímida. Provavelmente, os hipertensos passavam céleres, sem a perceber.

Numa roda, no meio da calçada, o que pareciam ser três advogados contavam seus casos e sucessos. O céu era azul e, contra ele, as torres esverdeadas do templo se tornavam imponentes. Um advogado era muito feio, apesar da roupa impecável, com vários detalhes dourados. O outro, negro e alto, com uma mandíbula forte. Sua gravata estava desalinhada, o colarinho aberto. Fazia muito calor e todos se gabavam de suas espertezas, debaixo do sol de quase meio-dia.

Um pedinte pediu 50 centavos, assim - especificando quanto queria. Outro, chegou pouco depois, torto e produziu vários sons ininteligíveis próximo ao grupo dos supostos advogados. Trazia, na mão estendida, um relógio com uma pulseira cor de laranja, vivo, uma dessas cores acrílicas. Nenhum dos dois obteve ajuda ali.

No meio da rua, pessoas de terno e gravata estendiam um papel com a frase da abordagem na ponta da língua: bom-dia, patrão, você é católico? Tive o impulso de explicar que não era quem ele pensava, que ele não era meu empregado e, muito menos, eu, patrão de quem quer que fosse. Talvez dissesse, ainda, não gostar de tratar assuntos íntimos e estritamente pessoais... mas nada disse e nem peguei o papel oferecido.

Precisamos uns dos outros. Por isso, há caçadores de transeuntes de todo tipo, por toda parte. Alguns são rechaçados como um estorvo, a outros, se procura eliminar como erva daninha. As cocacolas, os viagras, as geemes e todo mundo que pode, caça os mesmos transeuntes também, com anúncios, slogans, gingles e todo o arsenal que se sabe. Precisamos uns dos outros, mas essa busca do outro é uma busca utilitária. Procuramos em que o outro nos pode servir, como pode nos ajudar a continuar nosso rumo, mesmo quando achamos uma droga o rumo que tomamos!

Os raros momentos em que conseguimos nos aproximar de outra pessoa - qualquer uma -sem ser movido por interesses, sejam os mais explícitos e muitas vezes inevitáveis, necessários, ou aqueles mais recônditos, difíceis de perceber, quando se consegue esse contato direto, aberto, com um outro ser humano, experimenta-se algo que não se pode comprar em nenhuma transação. Essa experiência, sim, de tão rara, se pode dizer inédita.

 

Publicada em 25 de março de 1999

 

 

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