auto-retrato [] Crônica do dia

Insignificância

06/10/10


Parar no meio da estrada em noite escura, de céu escancarado e tentar contar luzes tremulantes, silenciosas como um desafio. Caminhar em tarde amarelada pelo pôr-do-sol até a lápide e conversar com a pedra. Desarmar-se até a última barricada por um simples e luminoso sorriso de criança. Tomar-se pelos eflúvios da emoção e agir contra a própria razão. Sucumbir aos instintos mais antigos e eleger outro humano como deus para, juntos, engendrar outro ser. Sentir-se todo-poderoso sob o impacto bruto da cachoeira e impotente diante da barata. Desfrutar com gosto e alegria o mais árduo trabalho na antevisão de seu fruto. Transformar o ato antigo de comer em rito e celebração e, nele, encontrar prazeres que o prazer de comer não sabia. Embrutecer-se a ponto de não socorrer o agonizante. Agarrar com furor uma idéia e chamar de deus e, em seu nome, ser capaz de praticar atrocidades, matar e, até, morrer pela simples idéia, nada mais. Um animal assim tão difícil de entender só pode ser o bicho homem, desafio vivo e fascinante à compreensão. Como as cidades que constrói, belo e assustador.

As formigas continuam por toda a noite o vaivém, em largas fileiras a trazer a planta inteira, cada folha da roseira, como verde e bamba bandeira ao fundo úmido do formigueiro. Um passo em falso e mataria muitas, mas as outras continuariam a azáfama sem chibata, sem senhor. O formigueiro da humanidade desaparece logo ali, da estação espacial. Somem ruas entupidas, corpos dourados nas praias, o ciúme monumental a matar um coração. O médico a se sentir Deus ante a morte e a vida também desaparece de lá. E lá é aqui ainda; um pouco mais, a Lua; além, Júpiter, Urano, Plutão - tudo ainda aqui no mesmo sol; a Próxima de Centauro... tão perto quatro anos, pouco mais, na velocidade da luz e onde, o formigueiro dos homens?


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