clode.kubrusly@gmail.com em 1966  Crônica do dia


Jogo americano

22/03/06

Chegaram entrelaçados por beijos e carinhos e chamegos e não sei que mais. Agiam por automatismo explícito, roubados todos os sentidos pelo outro, se o havia, pois pareciam um. Ela pousou com doçura a longa e lisa cabeleira em caprichosos arabescos a lhe moldurar o perfil sobre o duro mármore da mesa do bar. Nos olhos, um sinal de paz e cansaço, na boca, a intenção de um sorriso sem forças para se esboçar. Elói, o garçom perguntou qualquer coisa e quando Pedro levou os olhos outra vez à mesa, ali havia apenas um belíssimo jogo americano com a estampa daquele rosto como cromo antigo. Sobre o arremedo de toalha, um copo vagabundo com bebida ordinária.

A Pedro, o que parecia mais surpreendente era a naturalidade com que tudo se lhe apresentava e como ele contemplava o rosto litografado com o mesmo deleite que, momentos antes, lhe dava o rosto vivo, a pessoa, a carne, os cabelos, o indizível que se tenta narrar e escapa, que foge como peixe arisco na corrente da vida enquanto árvores centenárias, de ruas de outros tempos, testemunham impassíveis à fantástica realidade a se desdobrar ali, em mesa de bar sem nome, botequim de esquina antiga emoldurado por pedra nas portas, pedras lisas e desgastadas nas soleiras que séculos de pisar poliram...

Pedro acorda. Ou adormece? Não, acorda, é mais difícil acordar, sim, o é, quase como um parto. Dormir é mais fácil. Nascer é como despertar de um sonho louco e dá vontade de chorar, de voltar ao aconchego de fantasmas, da multidão de deliciosos absurdos e dos absurdos monstruosos que nos apavoram, do que for, voltar. Com esfuminho tudo se desfaz e a bebida sobre o mármore carcomido é apenas água pura, sem gás e o dentista ausente explica mais uma vez ser o açúcar que corrompe o mármore, como aos nossos dentes... Vem o garçom sem nome e traz a conta, ou o troco, tanto faz.

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