Crônica do dia
Publicação esporádica, a perder-se como berro de vaca, que todavia muge, apesar da inutilidade declarada de seu berro.

 

Lampejo de Luz

10/01/06

Hoje, depois de uma noite povoada por sonhos densos e provocadores, vejo-me, ao acordar, diante de uma frase inesperada, embora velha conhecida, como se ma servissem em bandeja de prata, direto da infância para o café-da-manhã que, por sinal, só tomaria dali a umas cinco ou seis horas.

Frase de odor beneditino - não digo fedor porque, como lema do jornalzinho ou da academia de letras do colégio, não lembro, vinha com o álibi que a juventude dá - mas o odor beneditino mal se disfarçava, pois deve mesmo a tal frase, que já se mencionou aqui, ter saído de forjas monásticas.

Lá estava ela, por nada, diante de mim ao despertar, como se a pudesse ler ou ver ou ouvir e, todavia, existia apenas em mim: "As mais terríveis tempestades são incapazes de perturbar a paz das grandes profundezas." Ora, a frase de bandeja nada significa, é claro. Na magia do despertar o que importa é o lampejo de luz!

E eis que luzia com estarrecedora clareza a meus velhos olhos, ainda embaçados de sono, a verdade elementar de que a paz daquela frase não era paz e, sim, morte. As profundezas das batinas e mosteiros, da disciplina e do exorcismo eram o fundo do Mar Morto, onde nem a mais primitiva bactéria consegue prosperar.

Durante mais de meio século aquela imagem de paz dormia em mim, mas nas próprias palavras se traduzia o equívoco. Cuidavam da paz das profundezas e não da profundidade. Mas isto são só palavras. Mais vale o vai-vem das ondas em seu risco perene contra rochedos. Mais vida há na espuma efêmera que ignora de todo a profundeza escura e fria que, ainda assim, alimenta de sua vida e de sua morte.

Enquanto a estrela brilhar, viver! Para o Avante - o tal jornaleco da Academia de Letras do Colégio de São Bento, que tal um novo lema: "Que a perturbação de novas tempestades nos fertilizem!" Que haja a cada manhã novo lampejo de luz.

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