autora: Mima 

Lembranças esquecidas

22/11/13

A memória prega peças. É o que somos em essência, afirma Buñuel ao relatar um encontro com sua mãe, velhinha e já incapaz de lembrar qualquer coisa. Remexi velhos arquivos, transportados das entranhas de um computador para outro, e um deles trazia à baila a memória: "Talvez pareça muito natural a amnésia primordial, a ausência de qualquer memória dos primeiros tempos em um bebê, em todos os bebês. Na consciência, não fica lembrança da gigantesca transformação - que inclui o parto - nem o menor vestígio dos primeiros tempos de cada um de nós."

Intrigante: seria uma deficiência da primeiríssima infância ou o defeito é, ao crescer, aprendermos a trazer o ontem para hoje e para amanhã? É obvia a necessidade lembrar onde ficaram os óculos ou as chaves etc., mas qual seria a utilidade de se lembrar de deleites e aborrecimentos, das lisonjas com que nos afagaram ou das ofensas e insultos com que nos agrediram? Sem dúvida existe uma memória utilitária e outra psicológica. Dir-se-ia que a primeira é essencial e a segunda, um estorvo...

Achei um outro trecho, datado de dezembro de 1993, e não o fui capaz de decifrar. Ignoro a quem me dirigiria e a quem me referia. Ignoro ainda mais onde parei e por que compraria uma maçã. Ei-lo: "É gozado sentir outra pessoa em nós. Óbvio que, volta e meia, ela me toma e fala e sente por mim. E vejo, ao mesmo tempo, o jeito dela, o gesto dela, seu rosto maroto em mim. Hoje, parei para comprar cigarros e me peguei sendo um pouco você. Tinha umas maçãs. Escuras, afiladas, como um rosto marcado pela estrutura dos ossos. Eram bem escuras e uma, quase preta. Peguei esta, certo que era você quem a escolhia... Vim devagar, bem devagar. Olhando tudo, ou quase tudo, e me deliciando com ver. Era um tanto seu jeito de olhar..."

Definitivamente, é melhor esquecer.

22/11/2013, at 09:58

 Na maior parte das vezes é melhor esquecer sim. Nunca tinha pensado mas muitas vezes a memória psicológica, quando não necessária, é um problema dos grandes. Xô!!!
 bj

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Sábia menina, como é bom falar com pessoas inteligentes!

bj, c.


22/11/2013, at 11:20

gostei da tese da memória útil e a inútil. por acaso vc não escreveu isso pra Branca de Neve? Ou para a bruxa da Branca de Neve? Ah, agora que escrevi estas perguntas, me veio à mente: talvez, para quem vestia a fantasia de Branca de Neve!

      sem assinatura

Pois é, o passado pode ser carga muito pesada. Até uma certa idade os bebês não tem passado! Você pergunta por se tratar de uma maçã? Ou devido a cor da maçã? Não sei, como disse, nem imagino a quem me referia ou a quem me dirigia. Em tempo: quem vestia a fantasia?


25/11/2013, at 10:19

Oi Clode
Belo texto, um assunto instigante... a memória, além de seletiva, é fluida..., vai se moldando ao "memoriador" continuamente, se desbotando e se recolorindo...
beijo
Aida

Sim, se desbotando e se recolorindo - bela imagem! Ela se torna mais conspícua à medida que envelhecemos. Na juventude quase não a percebemos, talvez por haver ainda muito pouco ali.

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