'Meu primeiro desenho' by  Anucha [1991]

Lua cheia

24/08/10

Anuncia-se uma atmosfera imunda por aqui, fácil de confirmar ao constatá-la permeável apenas a estrelas de primeira grandeza e planetas mais luminosos, estes, por sinal, há algum tempo, dando show no céu. A oeste, Vênus, a estrela Vésper, luz como lanterna de investigador em seriado de tevê. No zênite, a lua quase cheia - será cheia hoje, no meio da tarde - continua esfinge a nos desafiar sem perguntar e, tantas décadas depois dos temores do fim de seu encanto, do término de seu feitiço milenar sobre os enamorados, nosso satélite primeiro derrama sobre a paisagem a mesma luz roubada ao sol, mas em doses tão homeopáticas, que nos confunde a percepção e induz o observador a hipostasiar encantos e prodígios que o nascer do sol desmente.

Pergunto se gosta da luz... pálida?, tênue?, escassa? - como definir essa qualidade impalpável do luar? Como contar o que o olho quase não vê, a paisagem apenas esboçada por bastonetes, terminações da retina mais sensíveis, mas incapazes de definir cores? O mundo preto e branco enluarado, no entanto, nos parece azulado... Pergunto e ouço a negativa: não, não vi que tinha lua.

A noite de lua cheia, redonda, enigmática acaba engolida pela feérica iluminação das metrópoles. Tanta luz ofusca o mistério das noites descoloridas de luar. Pelas calçadas se acendem luzes ao passar para se apagarem atrás do transeunte. Dos carros, faróis fustigam o olhar. Das fachadas, letreiros, avisos, vitrines piscam e dançam mensagens luminosas no eterno catequizar. Dita 'alma do negócio', seduzem, conquistam o cérebro da vítima.

Num mundo sem tantas estatísticas, sem tantas cifras, sem tanta tecnologia, caberia, em noites de lua cheia, ter apagão proposital, a conclamar, como quis o poeta, seresteiros e namorados aos ritos e mistérios dessa tênue luminosidade do sol no meio da noite.

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