Medo Coletivo [1]

 

Esta crônica (ou ensaio?) ficou com o dobro do tamanho habitual. Por isso, foi dividida em duas partes, publicadas em seqüência.

 

Quem não tem cinqüenta anos, ou quase, ouviu falar mas não sabe o que foi o medo coletivo da vida no planeta encontrar um fim logo ali, quando as bombas nucleares, estocadas pelas duas superpotências, começassem a pipocar, elas também, numa inevitável reação em cadeia.

Ufa! Às vezes, nem eu agüento minhas frases longas! No entanto, acredite nem se morreu de bronquite, nem de ataque nuclear, mesmo assim, quem não tem cinqüenta anos e deles está longe, talvez até ria ao ouvir falar de duas superpotências, e ver a outra, a Rússia, que não era Rússia, mas União Soviética, a mais desunida delas, no estado em que se encontra hoje.

Quando uma simples frase é capaz de evocar uma enxurrada de associações, que trazem novas associações, numa espécie de reação em cadeia... era isso: reação em cadeia. Mera brincadeira com palavras - imaginar o comportamento das próprias bombas como réplica do que se passa com as partículas atômicas em seu âmago - trouxe uma imagem, maravilhosa, de um documentário científico da época, que explicava o que era reação em cadeia, com a imagem de um quarto cheio de ratoeiras armadas. Em cada ratoeira havia uma bola de pingue-pongue. Um figurante chegava à porta do quarto e atirava uma única bola de pingue-pongue, que batia numa ratoeira e a desarmava e as DUAS bolas, sempre pulando, batiam em duas outras ratoeiras...

Mas explico o "ufa!": a frase tem ainda outra coisa que me intriga: é aquele "sabe". Preferiria dizer realize, assim, em inglês. Esta é uma palavra sem um equivalente absoluto em português. (Quem sabe a recíproca de saudade?) Há umas poucas palavras assim, mas elas se apresentam, assanhadas, para quem tem alguma familiaridade com o outro idioma. Foi apenas isso, que me tirou o fôlego na frase de - agora me parece até curta! - de 45 palavras. Por certo, enquanto a escrevi, todas essas coisas - e outras mais, que omito por precaução - me passaram na velocidade espantosa de nosso pensar. Passou também, é claro, o temor de não ter dedos ágeis para mencioná-las todas ou, desviar-me irremediavelmente do tema do medo coletivo.

O medo coletivo! Como explicar aquilo que não se pode medir, que é, por definição, imponderável e subterrâneo? Creio que o ápice desse pavor está por volta de 1960. Na época, as escolas norte-americanas faziam treinamentos surpresa para evacuar os prédios, em caso de incêndio ou ataque nuclear. Eram estratégias diferentes, com alarmes de sons bem distintos, que já indicavam se o risco era morrer assado em poucos minutos ou a longo prazo, como ainda estavam vendo acontecer com os japoneses, vítimas deles próprios, norte-americanos. O terror começava cedo - era aprendido na escola!

Em toda parte se construíam "abrigos atômicos". Quem podia, fazia provisões para tentar sobreviver, depois do cataclismo. Os ricos cuidavam de ter abrigos particulares, com câmaras frigoríficas recheadas com todo tipo de provisões. Na China, como contou o Henfil, trabalhavam como formiguinhas e cada um providenciava a salvação dez metros abaixo da própria casa ou loja. Faziam túneis de interligação e acabaram por construir uma segunda Pequim, enterrada!

Hollywood começou a ganhar dinheiro com a catástrofe prevista e, provavelmente, já se preparava para documentá-la, na esperança de ganhar muito mais, caso houvesse sobreviventes. Poderia haver, diziam, em rincões esquecidos do hemisfério sul. Uma das vantagem de ser pobre, subdesenvolvido, no jargão dos eufemismos. Lembro de vários filmes. Em dois deles, famosos, um pequeno erro de comunicação, uma falha de computador desencadeia o princípio do fim. Era o inevitável, pois tudo estava preparado para funcionar automaticamente, acionado "em cadeia" pelo primeiro disparo "do inimigo"! Nas mesas dos bares se falava em foguetes balísticos intercontinentais, dotados de sei lá quantas "ogivas nucleares", com bombas agá de xis megatons. Hoje, se alguém falar em megaton, a meninada vai pensar que é o nome de alguma banda de roque.

 

(parte 2)

 

Publicada em 05 de abril de 1999

 

 

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