Maio a meio

15/05/07

No segundo gole, Igor pensou: vai ser impossível conversar com esta mulher - o olho me distrai, ou melhor, hipnotiza. Lígia não podia adivinhar a obsessão, é claro. Assim, continuou a contar de suas aventuras nos bandos que fizeram história, na Paris de 68, entre goles de passarinho e a olhar Igor com os dois olhos, como é natural.

Igor imaginava se Lígia percebia quando o interlocutor a olhava nos olhos ou se apenas se fixava, como ele, ali, naquele momento, no esquerdo, dividido verticalmente pela cor, metade caramelo, metade azul-água. Apalpou a mesa em busca da taça sem desviar o olhar daquele olho, ao mesmo tempo em que Lígia explicava por que não gostava de dicionários e seus complicados verbetes.

Fixar toda a atenção visual no olho - não no olhar! - não interferia em sua capacidade de acompanhar o que ouvia. O visual e o auditivo-cognitivo sempre lhe foram mundos independentes e autônomos. No ginásio, enquanto ouvia falações, desenhava, com a cabeça deitada sobre a carteira. Se o professor procurava surpreendê-lo com uma pergunta sobre o que dissera, invariavelmente, respondia certo.

Ao desviar o olhar por um instante, se lembrou de Lali, que dizia adorar dicionários e que brincava com as palavras e as pegava ao pé da letra... e, atemporal, lhe girou um turbilhão de desafios, códigos do homem, o código genético com a escolha natural da próxima geração, das próximas gerações... qual tornado de liquidificador com um olho de água e mel.

Lígia desviou o olhar e examinou a mão esquerda de Igor, não como quiromante, apenas como mulher. A examinou com vagar, com olhos e mãos, como quem pega um filhote assustado. Depois, mais plácidos - ela preferiria tranqüilos, sem trema, nada de dicionários e palavras rebuscadas - depois, mais serenos, o olhou nos olhos e disse baixinho: vamos? - está muito barulho aqui...

|home| |índice das crônicas| |mail|  |anteriorcarta599

2454236.768