Mentiras

2/12/97


Acariciei muito leve seus cabelos. Continuei a acariciá-la. Cabelos, braços - aqueles braços longos, pintados nos ombros e de dedos compridos e unhas roídas. Tomei-a pela cintura, os dois possuídos e quando toquei de leve, com as costas dos dedos teus mamilos arrepiados, um tremor percorreu teu corpo primeiro e depois o meu. Agora, não havia palavras porque não havia nada a dizer, e nos entendíamos apenas. Nossas bocas se encontraram, tímidas no começo, famintas depois.

Relâmpagos e trovões e vento desordenado prometiam água abundante à terra ressequida. Nuvens escuras, prenhes de tempestades nos envolveram e aconchegaram pois o resto do mundo todo não existia mais. E meus dedos percorreram teus lábios e meus lábios percorreram teu corpo e meu corpo tremeu diante do teu. Meus olhos pararam, no fundo dos teus, sorvendo gota a gota teus cachos derramados escorrendo pela pele pintada, que toco e que releio de olhos fechados. Meus dedos deslizaram num tempo infinito, no tato macio de ancas e braços, buscando e achando teus dedos nos meus: teus dedos compridos, das unhas roídas, abraçaram com força os dedos meus. Teus olhos olhando meus olhos e os meus, parados nos teus. Bêbado de teu hálito, embriagado de tanto te ver, de tanto querer.

Mas senti dedos e lábios - meu corpo, olhos e alma - meu ser, esquivos e loucos, perdidos, confusos, no medo de ser, no medo do Ser. Lutei a luta demente do querer-não querer. Fugi. E as águas encontraram nas brechas do solo rachado caminhos de rio em busca de mar. O ímpeto insondável das águas abriu e encontrou seu próprio caminho sulcando seu leito, na carícia imperceptível do primeiro filete que cresce e transtorna a pele da terra como o dedo do amante por montanhas e entranhas no corpo da amada.

Ela se virou e deixou o peso de seu olhar cair sobre o meu. Vi o desejo no verde de teus olhos, tão intenso que me assustei. Eu queria ser só bicho, só pele, só cheiro e ver o universo inteiro se resumir em teu corpo. Fêmea divina! - sentir teus lábios molhados e fuçar em teus seios como cachorrinhos nas tetas da mãe e lamber como os gatos lambem o pires onde o leite acabou e me grudar em você como um macaquinho agarrado aos pelos da mãe. Mas o zoológico não foi uma festa É proibido jogar amendoim para os macacos. É proibido dar comida aos animais. É proibido pisar na grama. É proibido subir na amurada. É proibido trepar aqui ou em qualquer lugar. Até proibir é proibido, Caetano? Não. Não é por aí. E o verde de teus olhos me mentiam que você ainda estava ali. Cadê o botão que desliga essa porra?!? Cabeça idiota! Arara tonta, que não para de matraquear. Não tenho televisão, mas tanto faz. Perdi o controle que desliga você, repetidora de todos os canais. Perdi o controle, remoto, ou não! Semente monástica! Monstro terrível! Totem de tabus empilhado por tantas gerações!

Os anos sessenta passaram ao largo e eu lá, alvo das setas verdes que teus olhos dardejavam em mim. Menina: nunca vi nada igual! E o carrossel girava em minha cabeça levando e trazendo a risada de todos os deuses, todos os risos zombando de mim. E o senhor do racional, na roda, deixou escapar pelo rabo do olho seu triunfo no sorriso mais cínico que já vi.

E teu corpo divino clamava e dizia que eu tinha agora e aqui, em minhas mãos, a possibilidade de romper as cadeias, despedaçar os ídolos e desmascarar a mentira dos templos. Repetia que com um leve toque se pode deslocar a pedra angular e fazer a abóbada ruir. Babaca, tremi.

E todas as idéias tomaram de assalto a cena povoando o palco de minha cabeça com a zoeira infernal do pregão de uma bolsa sem valor algum. E cada qual repetia o texto decorado, mil vezes ensaiado, cheio de emoção fingida. Mentira impostada na alma e na voz.

Tão simples, tão possível e tão impossível. O animal insistia: em nós, em mim, em você. O animal não cedia, por que os animais lutam até morrer.

E o bicho possuído de todos os deuses, de todos os demônios, da verdade simples de todas as divindades, não desistiu. Não podendo entender as razões sempre estúpidas que a razão tem, lutaria de um jeito ou de outro, até o fim. E fomos por um instante dois deuses, dois diabos, perdidos entre as ruínas do templo que desmoronou, como nossos corpos, no golpe final. Vitoriosos e derrotados, depois de tanto álcool, de tanta mistura, de tanto tesão.

Sim, não há mais palavras e eu contemplo estarrecido os farrapos do que nunca foi: despojos eternos do que sempre será. Impotente, vejo levados pelas águas das cheias os destroços do sonho que jamais sonhei: pedaços vivos, pulsantes, de mim, de você. De você tão eu, de eu tão você. E frágil e babaca e morno e covarde, vi a água escoar por dedos envelhecidos: sedento e incapaz de beber. Sentindo nos lábios ressequidos a poeira da ilusão cáustica do paraíso perdido. E trôpego, louco, chapado, vejo a metade tênue evaporar-se como nuvem brilhante no meu azul do meu céu. Te sonho ainda... talvez aquela que você nem é. Que importa? Quero você sonhada divina, quero você de carne, mulher!



|home| |índice das crônicas| |mail| |anterior|



74