Meteorologia

23/01/98


Prenuncio de tempestade. A tarde é quente, mas cabe-lhe melhor o adjetivo morno, talvez porque o calor úmido pareça grudar na pele. Ademais, só os desocupados discutem adjetivos. Uma folha se move, de leve, para dar certeza de que a paisagem não é um fotograma - o ar está imóvel. O céu divide seu azul com imensas nuvens. De vez em quando o sol some por uns momentos. A luz torna-se mais misteriosa e, no oeste, o fundo escuro destaca a luz na vegetação. A paisagem cambia cores e brilhos e, no entanto, aqui embaixo, o ar continua estagnado.

Ele se espreguiça e me espicha o olhar sarcástico de sempre - há tempos não aparecia!

- É uma metáfora, ou vais mesmo falar da meteorologia? - provoca Satanás.

Em verdade, quantas vezes já sentimos em nós esse prenuncio de tempestade! Todavia, o demônio não vem pelo simples gosto de filosofar, e ele continuou:

- A estagnação, o ar congelado, a ausência de qualquer movimento na menor folhinha é isso o que anuncia mais alto o tamanho da tempestade que virá, não?

Para as bandas do oriente, o céu já tem um cinza escuro e, por alguma brecha, o sol ilumina como um spotlight! O espetáculo é cada vez melhor, mas o ar continua quieto como um sólido. As borboletas são a única confirmação de que ainda é fluido. Há os pios habituais, mas os pássaros estão recolhidos. Satanás insistiu:

- Fazer previsões meteorológicas, adivinhar como a atmosfera do planeta vai se comportar, é uma das ciências mais complexas, implica uma tal quantidade de dados e de variáveis, um número tão gigantesco de possibilidades, que foi ao tentar um modelo para estudá-la, que surgiu a teoria do caos... e você sabe como essa idéia me é cara... - o Caos! O princípio! Todas a possibilidades! - no entanto, se você está insinuando o prenuncio de outras tormentas, ah, aí as coisas são ainda mais complexas e isso me enche de vaidade! Semeei na alma humana mais ventos, pressões e depressões do que as piores condições existentes na tênue película que envolve o planeta...

Tentei ignorar o demônio. De fato, há períodos de inexplicável estagnação e, na alma humana, a percepção, a consciência desse fato provoca, quase sempre, uma angústia - mais uma variável na complicada climatologia psicológica... Poderíamos apenas olhar, como olhamos essa tarde quente e quieta... - as sincronicidades de Jung! Não posso omitir que, no exato momento que escrevi quieta, começou a ventar! O vento chegou e trouxe consigo o cheiro de chuva, que sempre desconfiei que é, ou está misturado, com a variação da umidade... Pronto! Escuta-se ao longe a primeira trovoada... Mais: com o vento, os pássaros voam além de cantar!

Dizia: somos incapazes de apenas observar os fenômenos "meteorológicos" que acontecem dentro de nós, como fazemos com os da atmosfera da Terra. É bem verdade que, desde a antigüidade, o Homem sempre tentou ser mais poderoso que os deuses das chuvas e dos vendavais. Ora através de cantos e danças, ora com aparelhos complicados transportados em aviões...

- Claro, nada mais natural. Sempre é possível desafiar os deuses e, mesmo quando se perde o desafio, ganha-se excelente diversão... - o comentário torna óbvio seu autor - Ao ouvir o primeiro trovão o Homem viu brotar a inveja de um ser maior, invisível e, nitidamente, mais poderoso. Se não viu, a semente foi lançada, do mesmo jeito. Raios e relâmpagos vieram como esterco e a planta da inveja divina se alastrou rápido e virou praga. Vou contar um segredinho: ao observar a tarde quente de ar parado - que agora se move, e rápido - você não pode interferir no que vê, mesmo que queira... mas na "outra meteorologia", o observador é, ao mesmo tempo, a coisa observada e o simples fato de observar altera as condições daquilo que se quer apreender...

Satanás soltou sua inconfundível risada e continuou:

- ... Esta é a minha brecha! É aí que ponho um dedo...

- Você põe um e o cara mete logo os dez, os vinte, dos pés e das mãos! - cortei. Mas o Diabo tinha razão! Você pressente a tempestade, recebe os avisos da tormenta, que sabe inevitável e diz: pois que seja logo, se tem que ser... mas os desígnios divinos não são fáceis de decifrar e no caldeirão do clima interno o tempero de outros quereres, nada divinos, já influem apenas na "meteorologia" local...

O céu voltou a clarear e os ventos seguiram seu curso, deixando o ar fixo e quente outra vez. Acaso mais fresco, mas ainda irrespirável, no prenuncio de uma tempestade que se adiou...




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