Publicação esporádica à guisa de crônica.

Milagre

18/01/19

Chamam de alto verão (o apego do Sapiens à palavra é proverbial). Aqui na assaz maltratada e mui enaltecida, por sua formosura, Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, o calor medido e aquele aparente (batizado como sensação térmica) disputam novos recordes a cada dia de impecável céu azul e inclemente sol calcinante, apesar da vastidão do Oceano a beijá-la pelo sudeste. Rendo-me: é o alto verão, altíssimo até!

Os fatiloquentes do clima prenunciam chuvas e intempéries, preveem ventanias e raios, granizos e inundações, mas os dias se sucedem imaculados de qualquer nuvem e dos céus apenas as radiações abrasadoras de nossa estrela desabam sobre nossas cabeças qual fogo de maçarico, como se costuma fantasiar por cá.

Digo tais coisas e logo me lembro do Nordeste, equatorial, seco, de Secas notórias e lindamente cantadas em prosa e verso. Nordeste exíguo de águas desde minha tenra infância e mesmo muito antes, alvo das preces quotidianas de minha avó que, como uma multidão de crentes, atribuía a poderes imateriais a ausência de chuvas naquela região, de calor abrasivo e terra rachada em fundos de açudes.

Rogavam todos pelo milagre que transformaria o Saara em Floresta Amazônica. Rachel de Queiroz começou por causa de uma dessas secas devastadoras, molas propulsoras dos fluxos de migração para o sul maravilha, a de 1915, há mais de um século, tema de seu romance inaugural O Quinze.

Abandono-me nesses mares e dá-se o milagre, local, pessoal, insignificante: já sinto menos quente o dia a caminhar para novo recorde de temperatura. Oh, como é fácil enredar-se em lamentações e autopiedade! Como água morro abaixo maldizemos o calor cercados de exuberantes florestas atlânticas, estirados em areias igualmente atlânticas, por opção e, não, castigo.

Por tudo isto, abstenho-me de reclamar.

Fri, 18 Jan 2019 12:18:12 -0200

Muito bom!

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Obrigado.

   (É sempre excelsa honra sua apreciação.)


Fri, 18 Jan 2019 23:12:05 -0200

lindamente descrito o verão bruto deste ano.
Você leu o Quinze?

      sem assinatura

Obrigado.

Não, não li O Quinze. Dela só li o que precisei por trabalho, Memorial de Maria Moura. Gostei muitíssimo e a admiro muito.


Sun, 20 Jan 2019 10:17:00 -0200

Olá Clode,
Bela, belíssima crônica. Estou, aliás estive a semana toda no Rio, na Gávea, especificamente no IMS.
Não foi possível materializar a visita prometida mas na minha próxima vinda ligarei antes para combinar
um momento juntos. Me envie número de telefone fixo ou de celular.
Forte abraço,
Maureen

Olá Maureen!

Obrigado, muito obrigado.

Ligue mesmo, na próxima vinda, e combinaremos o momento juntos, sim.


Tue, 22 Jan 2019 09:09:49 -0200

Sábio!!!


Bjs
Ana

Merci.


Thu, 24 Jan 2019 10:59:44 -0200

Que delícia ver o que você escreve seja o que for... Por exemplo Assaz... Fatiloquente... Raquel de Queiroz, O Quinze, Abadono-me... ( agora me ensine: o que mesmo quer dizer abandono-me...) Sempre uma delicia o ler o que você escreve, e faz tempo que é assim, né?. Sempre me pergunto de onde você descobriu todas essas coisas. E faz tempo... Desde de quando você sempre foi um aluno nota dez... pra alegria de um certo Professor Kubrusly... Você sempre foi brilhante em tudo que fez. Eu, ao contrário, sempre fui meso um bagunceiro... nada a ver uma aquele super professor Kubrusly. Saudades... digamos. E qual será o eu próximo artigo?
Ah... O que mesmo quer dizer "fatiloquente" (estou sempre tentando aprender com você, né?)

      sem assinatura

Agradeço sinceramente suas palavras, sempre impregnadas de um humor refinadíssimo e muito seu.

Retruco o "aluno nota dez"... Creio poder contar nos dedos de uma mão as notas máximas que obtive ao longo da vida. Não esqueça, fui expulso duas vezes do colégio dos monges por ser demasiado bagunceiro.

Quanto a fatiloquente, vamos lá, já me desculpando pelo uso da palavra. Diz o dicionário: "que prediz o futuro; fatídico, fatíloquo". Pelo menos coloquei um link que remetia ao dicionário de português, prevendo que alguns não atinassem com o termo.

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