Mocinha

 

Você, jovem leitora que nem me lê, talvez não possa imaginar o que seja um baile de debutante. Pior, se procurar no dicionário o significado de palavra tão esquisita é capaz de dar boas risadas. O Aurélio é sintético: "Mocinha que se estréia na vida social." - e você, jovem leitora, há de perguntar: "mocinha?" Sim, mocinha, - repito - o que é isso? E voltam expressões esquecidas,. do tempo em que se dizia que fulana ficou mocinha... com as reticências, para significar primeira menstruação.

Depois do "mocinha", qualquer coisa, até o "estréia na vida social" soa menos disparatado, apesar do "se", para indicar que a própria mocinha estréia a si mesma. Que tal? E a sua estréia? Teve fogos de artifício, pré-estréia, como um filme badalado? E o que seria a vida não social? Essa, também teve festa de debutante? Pode ficar sossegada - não é palavrão nem xingamento. Vem do francês, na moda até há uns cinqüenta ou sessenta anos, de débuter que significa exatamente isso: iniciar-se, estrear-se. O Aurélio afirma, ainda, que era termo empregado para mocinhas e cavalos de corrida... Hoje, soa esquisito: debutar, debute e debutante.

Perco tempo com uma palavra por causa de outra, muito mais antiga, herança dos gregos, aqueles, que nos legaram quase toda a base do pensar ocidental. Aos fatos: nos bailes de debutante, do início do século, a estrela era essa idade preciosa, difícil, rica quando tudo viceja, cheio do frescor da inocência. Idade na qual mais um ser humano chega, com energia e surpresa, trazendo os sonhos da criança, a um mundo que todos os adultos proclamam não ser o que querem, mas continuam a fazê-lo tal como é. Hoje, olhamos esses convidados recém chegados e os chamamos de aborrecentes, e uma multidão, cada vez maior, passa por essa idade crítica como passou pela infância e, provavelmente, passará pelo resto da vida: sem nenhuma condição digna de sobreviver.

Pois bem, a outra palavra, legado dos gregos da antigüidade, é ética. Imagine uma criatura doce, de quinze anos. Lembra dos seus quinze anos? Do baile de debutante? Da valsa dançada com o pai, ou o avô e, depois, de poder bailar com alguns dos sonhados príncipes encantados? Pois é - a professora pediu a uma dessas criaturas delicadas e assim em flor para fazer uma redação sobre "Ética e Cidadania". O que você, leitora perspicaz, me diria sobre ética? E cidadania?

O dicionário - notou, está aqui ao lado? - afirma que ética é o "estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto." Os filósofos encheram livros e mais livros e eu acho pouco. Não imagino que um número qualquer de livros possa resolver. A definição é capaz de nocautear os mais preparados. Juízos de apreciação! Pode apreciar à vontade, leitora e, depois, diga quem julga a conduta humana e a qualifica. Não são brincadeira os conceitos aí implícitos! A serpente - lembra? - induziu a Mulher a experimentar o fruto da árvore, que abriria os olhos, justamente, a do discernimento do bem e do mal... A ética, muito antes de existir o termo grego...

E seria "ético", "de modo absoluto", fragmentar o Homem em "determinadas sociedades" e dizer que em tal lugar uma atitude é "do bem" e acolá, a mesma, seria "do mal"? Divida-se o mundo em pedaços, estes em novos fragmentos e assim por diante, para ver Caim disputar com o irmão até a morte um sorriso de Deus. Qual a ética da fragmentação?

E o que farão os juizes com a "apreciação", um código? Depois do código, seria preciso criar o conceito de "cidadania", no planeta fragmentado em cidades, em guetos, em bairros, em gangs, para tentar controlar com polícias, exércitos e armas? Qual a ética de tanta violência?

Não seria ética um problema que cada indivíduo só pode resolver consigo, ao se conhecer verdadeiramente, ao compreender o que o move, nas profundezas de seu ser?

Aceita, leitora que nem me lê, o convite para esse debute?

 

Publicada em 22 de março de 1999

 

 

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