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Movimento feminino

08/10/08

Só não começou com o pedido, xícara vazia na mão, na boca da caverna ao lado, de um punhado de açúcar, porque se esqueceu o homem de inventar a xícara e o açúcar antes do escambo. Acrescente-se o fato dos historiadores de então voltarem com mais gosto os olhos aos feitos heróicos de caçadores e menosprezarem os tititis com que as mulheres começavam, ali, a traçar um caminho independente, entre trocas de rações e afazeres com crianças... Mal sabiam, os doutores do registro e pintores de paredes e tetos quais seriam as verdadeiras protagonistas num futuro remoto, mais remoto ainda do que o conhecemos nós.

Assim, não há registro nem documentação da primeira permuta, da troca de algum punhado de semente por, quem sabe, algum naco de toucinho de papada de bisão e, muito menos, se guardou para a posteridade o momento decisivo quando alguém sugeriu ou impôs: 'tá bom, mas você me devolve xícara e meia, tá?' Por que, se em troca uma xícara, exigiria xícara e meia na hora de receber? Por quê?

Depois, veio Jeová e, de outra banda, Satanás. Um diz: 'pecado, pecado mortal!' Outro retruca: 'não! é somente a remuneração pelo empréstimo, o pagamento por uma solução pronta e à mão'. Seguiram-se séculos de sínodos e súcias de demônios a debaterem, em vão, a santidade ou pecaminosidad da usura, enquanto se erigia o tremendo edifício em tijolos de prestações e juros e alíquotas e taxas e dízimos e papagaios e títulos e letras e talões e cartões e outros senões.

Não poderia adivinhar aquela mulher, zelosa da alimentação naturalíssima de seus rebentos, o poder de seu requebro ao pedir, à porta da vizinha, um pouco de farinha. Um movimento natural capaz repercutir per saecula saeculorum e se agigantar em ondas e reverberações nefastas até acabar por lamber os pés do gigante adormecido, agora, como simples marola.

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