autoretrato Crônica do dia

Neutralidade

04-07-07

Manhã neutra como um cartão cinza-neutro 18% da Kodak...

O vento cala como estátua de gelo, mas não está frio. Sons se multiplicam e apagam a luz da manhã sem névoa, sem transparência, sem brilho. A poluição esbate sombras, o longe, o despertar.

Passa um helicóptero barulhento e grande como de presidente. Branca ave sem asas. Liquidificador de estrondos e alucinações. Vai rumo oeste.

O primeiro bem-te-vi chega radiante, traz algo no bico. Pousa num fio. Logo vem o outro, que me parece o macho, pousa em um fio mais alto. Ela me vê, se for mesmo ela o primeiro, e recua. Desiste de entrar no ninho, reconstruído a partir de outro, do ano anterior, sobre os tubos de refrigeração de um transformador de poste - um local quentinho. Voa com sua colheita até uma antena de televisão próxima - ainda existem essas antenas! - e, lá, depois de um tempo, come o que trazia no bico para alimentar os filhotes. Revelar o local do ninho, não! Antes perder uma refeição. O macho a seguiu; depois, ambos sumiram.

Dispara uma sirene ao longe. Continuo sem entender a função desses alarmes. Uma súbita gritaria anuncia a chegada de algumas maritacas, meia-dúzia, pouco mais. Vem em busca dos frutos ainda fechados da paineira. Com os ramos nus, negros contra o céu pálido, são bem visíveis.

Furam a casca muito grossa com seus fortes bicos e comem as sementes, que separam com dificuldade das fibras de paina.

Outros gritos, muito agudos, delatam a família de sagüis em carreira pelo fio grosso de telefone. No mesmo instante voltam os bem-te-vis. Outras aves, grandes, de bico e rabo compridos, fazem algazarra em outra árvore, por perto. Um sagüi dispara pelo fio, os outro ficam imobilizados, assustados. Um volta para trás, correndo. Outro toma um terceiro rumo e se dispersam. Depois, para se reunir, ouvem-se muitos gritos e a manhã se enche de sons.

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