Nome aos bois

23/09/97

publicada com atraso no dia 24


Pelas minha contas atuais, tenho uma única, fiel, linda e preferida leitora. Essa preciosa criatura, ultimamente, já tem sido frustrada ao não encontrar sua crônica para o café da manhã. Ontem, pode ter posto em dia seu repertório de xingamentos ao ver o dia acabar sem a crônica chegar. Apesar das aparências, não sou um sádico e, por ela, minha leitora solitária, fui remexer velhas gavetas para abrir as portas, ainda que com pão dormido. Achei um relato surpreendente apenas por um detalhe: é verídico, absolutamente verdadeiro, aconteceu em 12 de junho de 1991. Vai, dormido como o encontrei:

Saí para andar. Quem sabe, comprar jornal? O asfalto estava muito preto e inóspito e tenho pés em vez de pneus. Pulei a cerca e invadi a fazenda. Fui andando por uma trilha que me afastava do barulho dos carros. A trilha acabou num desbarrancamento e as mosquinhas, aos montes, me confundiam com alguma vaca. Voltei pela mesma trilha. Peguei outra, que seguia mais para o norte. Ia em curva na direção de uma mata. Era cedo, mas o Sol começava a aquecer alma e corpo. O caminho entrou pelo meio das árvores, sempre largo e sem muito mato. Aos poucos a mata me envolvia em seu mistério e beleza. Não era mata fechada e muitos spots se acendiam aqui e ali, no chão ou na vegetação rasteira. O caminho seguia curvilíneo me levando para seu âmago, pois cercados de árvores por todos os lados perdemos nossas referências visuais - mesmo as inconscientes, que nos orientam automaticamente. Parecia um caminho usado, em algum tempo, por carros ou charretes. Ao perceber isto, pensei que, embora tomado pelo mato, poderia estar me levando para alguma casa, que poderia estar habitada, que poderia ter muitos cães... Afinal, ali eu era um invasor, já tinha caminhado um bocado e não tinha mais a menor idéia de como sair dali...

Era o fascínio de um lugar com a magia dos bosques, o deslumbramento de um lugar mágico misturado com a apreensão de estar "invadindo" uma propriedade. Uma mistura de Hitchcock com documentário da BBC. A verdade é que começava a ter medo, diante daquela lembrança dos cães...

Ia indo, atento ao que pudesse surgir pela frente. Depois de uma curva, vi um muro branco numa nesga entre as copas mais distantes. Mais alguns passos e percebi que se tratava, apenas, de um pedaço de céu. Continuei em frente. O sol já estava mais alto e, junto com a caminhada, aumentava o calor. O bosque ficou mais ralo e o caminho seguia. Agora, subia um pouco, por um descampado com arbusto aqui outro acolá. Ao longe, surgiu uma casa com equipamento para aquecimento solar. Mais um pouco, a cerca. Pareceu-me um alívio, eu devia estar saindo da tal fazenda sem encontrar cachorro ou gente. Do outro lado da cerca, uma rua de terra de um loteamento desconhecido. À direita, na frente de uma construção, três homens conversavam. Algum instinto me disse para seguir naquela direção. Fui, até descobrir que a rua acabava numa capoeira. Voltei. Subi num barranco e olhei o loteamento do alto. Antes era o medo dos cães. Agora, eu estava perdido. Observei que havia fios da Light - é, dona Sabrina, pra mim vai ser sempre Light, o nome da companhia de luz. Decidi seguir os fios, a medida que iam ficando mais grossos. Estava perdido, mas tudo bem: andando tinha chegado; andando sairia dali. Em vez de bússola, a Light. Uma descida muito íngreme me levou ao asfalto, bem no meio de outra ladeira. Os fios me diziam, agora: subir! Era mais íngreme, e subia - Pernas, vamos lá!

Passou um carro com os vidros fumê fechados e o som fazendo mais barulho que o motor. Estava de olho nos fios. De repente uma placa amarela com letras vermelhas: "alinhamento traçado pela prefeitura em março de 1989". Mais uns passos e outra placa indicava um nome de rua, na altura do número cem! Pensei: - porra! é por isso que não chega carta lá em casa. Todo loteamento tem uma rua com esse nome..." Segui no rumo dos cabos elétricos. Olhei em volta e havia uma quadra de tênis... Aí, já era coincidência demais...

Bom, fora o barato de estar perdido a menos de cem metros do portão da própria casa o episódio, que este relato só pode evocar de leve, mostra como existe muita coisa além de cabeça, tronco e membros e coração e fígado e bexiga e rins e unhas e cabelos e...

Foi uma sensação inesperada e forte. Quantas pequeninas coisas do cotidiano nos dão a impressão de segurança? Quantos medos estão adormecidos no fundo de nós? Sei apenas que o encantamento acabou no instante em que identifiquei onde estava, ou seja: quando dei nome aos bois...



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