Nós e os Outros

 

Nos agredimos o tempo todo uns aos outros. Parece inevitável. Vivo na periferia de uma da maiores aglomerações urbanas do Planeta, resultado da conurbação de quase quarenta cidades ao redor de São Paulo. Chamam a esse caótico conflito de interesses de Grande São Paulo. Aí, em menos de meio porcento da área do país, se amontoa mais de 10% da população do Brasil. É inevitável: nos agredimos uns aos outros o tempo todo.

Há trinta anos, teríamos nas primeiras páginas e, principalmente, nos noticiários da tevê, imagens de ratos amontoados em caixas em laboratórios de psicologia experimental - estava na moda. A experiência era muito simples: num espaço limitado - a tal caixa - colocavam populações cada vez maiores de ratos. Depois de um certo limite, os ratos começavam a guerrear entre si. Se agrediam e, se não me engano, chegavam até ao canibalismo. Mas isso era "pauta" - como dizem os doutores da informação - há trinta anos. Hoje, os modismos são outros.

Ninguém mais parece estar preocupado com o absurdo de se viver assim, como se fossemos ratos demais, ou como se nossa caixa tivesse ficado pequena para tantos. Continuamos a fabricar bebês e a importar habitantes. No primeiro caso, por sermos também animais, sujeitos a instintos elaborados e aperfeiçoados durante longuíssimos milênios. No outro, por termos construído uma sociedade com base na ganância, na cobiça, no estímulo à posse de bens materiais. Um modelo egoísta, sem qualquer consciência do outro, de uma divisão do pão em tantos pedaços quantos forem necessários para saciar a fome de todos.

Aquele que só vê possibilidade de obter algum alimento garimpando lixo, tem uma reação normal - pelo menos do ponto de vista animal - ao agredir outros, como os ratos da experiência, na tentativa de mudar sua situação. São considerados bandidos, ladrões, malfeitores, por quem têm dinheiro para comer, se vestir e possuir um abrigo. O contraste entre os que tem muito e os que tem muito pouco, ou nada, aumenta e continua a aumentar, conforme todas as previsões das organizações internacionais que cuidam do assunto. Há vinte anos, pelo menos, vejo relatórios dessas entidades com as mesmas previsões macabras.

Parece que dizem: "olha, eu bem que avisei..." Apesar dos avisos, nada se faz. Nós, nada fazemos. Continuamos a lutar pelo nosso pedacinho. Não temos tempo, verdadeira vontade e a energia necessária para mudar nada em nosso jeito de viver. Vamos tocando, como se diz. Muitas vezes, se acredita que a solução está fora de nós. Esperamos que algum desses organismos internacionais ou alguma instância de algum governo tome providências que venham a alterar este quadro. Justificamos nossa passividade com o argumento que nossa ação é insignificante quando se trata de um problema mundial, nos dizemos gota d'água no oceano.

Enquanto isso, a sociedade que nós fizemos, continua a reduzir o número de ricos, que vêem suas fortunas crescerem incontrolavelmente - há pouco, os Estados Unidos se disseram surpresos com um saldo muito maior do que as mais otimistas previsões... enquanto o número de pobres cresce, mas a pobreza não se deveria medir com estatísticas - são pessoas que não comem, não se vestem e não moram. Nenhum número pode traduzir esse sofrimento.

E nós, minoria absoluta que tem computador e telefone, continuaremos a nos agredir em cada encontro com outra pessoa, com o "desconhecido" que caminha muito devagar a nossa frente quando temos pressa, ou que esbarra em nós, porque vinha afobado e nosso passo miúdo era um empecilho em seu caminho. Continuaremos a nos agredir quando o balconista não nos der a atenção que sempre acreditamos merecer. Continuaremos a nos agredir em todas essas pequenas coisas e a vociferar contra a violência. Como se só os outros fossem violentos...

 

Publicada em 15 de abril de 1999

 

 

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