auto-retrato 

O cabo da enxada

17/08/10

Neste recanto perdido, à margem da Grande São Paulo, o clima do fim-de-semana mimetizou a idéia que faço da Antártida - ventos gelados, céu coberto de nuvens sem nenhum lampejo de sol. Várias pessoas me disseram terem-se metido na cama sob grossas cobertas, edredons generosos e aproveitado o feriado semanal longe do açoite da intempérie nefasta.

Eu, normalmente mais afeito ao mundo do portão para dentro, meti-me em casa e só arrisquei pisar no quintal por explícitas razões de força maior, como trocar a água do cachorro ou lhe levar a ração. Todavia, ontem, segunda-feira, contrariando os vaticínios climáticos, abriu-se já na madrugada a cortina dos céus, com lua crescente e planetas exibicionistas, para os lados do poente e, depois de alguma névoa pela manhã, o sol brilhou e mudou as paisagens dentro e fora do Homem, de cada um de nós, homem ou mulher, adictos de nossa estrela, de nossa mãe maior, fonte primeira da vida.

Para mim, o sol desta segunda-feira tudo transformou e, mexe daqui, mexe dali, calhou-me testemunhar em favor do diabo, do Satanás de Goethe em seu conselho primeiro ao doutor, ao Fausto de oitenta anos. Longevidade? Isto se arranja com a labuta no cabo da enxada e outras particularidades da vida de quem planta seu sustento.

Como disse, mexe daqui, mexe dali e eis-me com o proverbial cabo, sem o qual a enxada é inútil, nas mãos a cutucar e revirar a terra, a capinar e lutar contra o mato que, há muito, tomou tudo. O sol batia forte e o prazer derivado dessas labutas me ocupou até notar o sol já baixo, a cortejar o horizonte. Parei para recolher as ferramentas. Sentia-me bem, cheio de energia e disposição.

Foi quando me lembrei da receita de Satanás - não achei minha tradução do Fausto para uma citação literal! - e certifiquei-me em meu corpo de sua eficácia.

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