Outro

 

Quarta-feira de maio e frio - melhor: de muito frio para maio. Ia dizer prezado leitor, ou adorável leitora, ou outro qualquer lugar-comum de quem quer materializar esse ser misterioso: o leitor, mas calo. O tom de missiva, que me pareceu jocoso e adequado já não cabe mais, antes mesmo dos preâmbulos. Já falei aqui dessa hipótese necessária para muitos que escrevem: um leitor, ainda que imaginário. Já tentei matá-lo, deliberadamente, com o cuidado de avisar não se tratar de qualquer pessoa que, porventura, estivesse a ler, de fato, aquelas linhas que, por razões ignoradas, jamais foram publicadas. (Aos psicólogos, a explicação!)

Agora, a mesma questão volta a me cutucar. E com argumentos matemáticos, para ser mais incômoda. Se você olhar o índice deste ano, verá que se parece com boletim escolar de aluno relapso: cheio de vermelho! - Cor escolhida na contabilidade das notas ruins, dos saldos negativos e outros fracassos de nossas vidas. Lá, apontam os dias em que a crônica deixou de ser publicada. Nos outros anos, a principal razão para essas falhas era uma incompatibilidade entre o cronistaprendiz e o equipamento (aí incluídos o hard e o software). Houve até agressões do Acaso, quando um raio queimou a mãe, a tal da placa-mãe, do computador. A coisa chegou a um ponto tão neurótico - a relação com essa máquina maluca que simula ser inteligente - que acabei desistindo de ter qualquer tipo de computador e, confesso, me senti até aliviado e free again!

Agora, é diferente. Em boa parte, o que se pode dizer do cronistaprendiz pelas falhas deste ano é que foi relapso, como o aluno que cabula aula, faz gazeta. Não vai à escola porque gosta mais do jogo de bola de meia (ainda existem?) ou outras estrepolias com os colegas. Aqui, cabulei a crônica porque constatava que ninguém a lia. Você já viu o contador ao pé da página e sua função é essa, exatamente: dizer se houve, ou não, algum escasso leitor. Há períodos em que eles vêm: três, quatro a cada dia. Em outras épocas, somem. A crônica vai e ninguém vem. No outro dia, outra crônica apaga aquela (fica uma cópia, que pode ser encontrada através de qualquer um dos índices, é claro!) mas, de todo modo, apaga-se a crônica e o contador está lá, para delatar que não houve um único leitor - o tal ser misterioso, anônimo e fundamental.

Ora, depois de ter matado o leitor hipotético, como confessei aqui e tentar me convencer do absurdo dessa dependência, vejo, hoje, no contador de leitores, que tive visitas! De imediato começo a me sentir um canalha. "Os caras vieram e encontraram pão dormido!" - me acuso. "A crônica está aí há dois dias, mofando!" E me digo outras coisas mais, que não ouso repetir. Diante dos fatos, desmoronam as belas teorias sobre serem os leitores imaginários isso ou aquilo, de se precisar ou não de tais fantasias, de ser possível contar um caso para estrelas longínquas ou grãos de areia da praia.

O leitor, mesmo quando não manda cartas para o cronistaprendiz@gmail.com, é muito real e, acima de tudo e principalmente, é gente! Nada de dizê-lo público ou platéia. É único, individual, mesmo que sejam milhares, milhões. Ele é o outro, a outra pessoa, um outro ser humano, que cria, para cada um de nós a possibilidade da relação. Sem isso, enlouquecemos.

 

Publicada Quarta-feira, 26 de Maio de 1999

 

 

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