Paixões

04/10/97

Outro dia falei das paixões. Como não usei esta palavra, acho que um ou outro deve estar se perguntando: - de paixões? Quando? Ora, é preciso cuidado com as palavras, podem ter efeitos colaterais. Uma simples batata também pode, até mesmo o arroz integral. Tudo depende do uso e do abuso, de quando e pra que empregar. Algumas palavras estão tão carregadas de significados, se arrastam com tanta dificuldade sob o peso das implicações e conotações que, quando posso, evito usá-las. Não por temer lhes infligir qualquer dano, é óbvio, mas por temer, isso sim, ter como dito aquilo que não quis dizer.

Comentei o quanto é poderosa a química de nossas usinas interiores. As chamei de hormônios e neurônios, mais por gostar de ver as duas palavrinhas de mãos dadas, pois além de não ser médico, nem bioquímico nem nada, imagino que sempre existem mais coisas do que tudo que a ciência possa vir a desvendar. Falamos do bicho que se apodera de nós. De como o animal, em certas circunstâncias, é capaz de assumir o comando e de nos cegar. E é exatamente por não aceitar que possamos ser apenas esse bicho, que acredito haver mais do que a ciência consegue enxergar...

A essa altura, aquela leitora já se inquieta: - mas você não vai falar das paixões? Pois é... já estamos falando... e não. Fora um significado que só deve fazer sentido para lobos e engenheiros do mar: "forte olhal fixo na sobrequilha para segurar a braga da amarra" - o próprio dicionário dá mais 14, diferentes, para a palavra paixão! Confrontando alguns, parecem haver contradição. Antes de seguir, vejamos: o "entusiasmo muito vivo por alguma coisa", essa energia vital, também é chamada paixão. Mas, a própria definição do dicionário a distingue de paixão como "sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão" ou como "afeto dominador e cego; obsessão". É importante a distinção: as duas últimas definições, definem a paixão quando nossa cabina de comando é seqüestrada pelo animal; já. o entusiasmo intenso pela Vida, seria a paixão imprescindível para alimentar cada um de nossos dias.

Ora, o que queria dizer é que essa paixão, a do bicho, a que cega e se sobrepõe à lucidez e à razão, essa, que todos experimentamos algum dia e, provavelmente, associamos à alguém, essa paixão desaparece, se tiver seu devido tempo, some como fumaça no ar... Tá bom, dona Sabrina... sei que tudo isso é mais velho do que andar a pé. Mas a gente passa a vida inteira repetindo o óbvio. Aliás, se não for óbvio, para nós, não se deveria abrir a boca. Essa paixão é fogo de palha. Eis o que queria dizer. Alguns falam de paixões que duram anos. São de proveta, garanto, totalmente artificiais. A paixão mesmo, aquele estado de cegueira e alto grau de intensidade, passa. Some, se dilui. Se não alimentarmos a idéia da paixão, com pensamentos, devaneios, sonhos e, sobretudo, com o querer, um belo dia, quando procuramos pela paixão, nada encontramos - como na brincadeira das crianças: Cadê a paixão que estava aqui? O gato comeu...

Certa vez me apaixonei por uma mulher casada. Nos encontramos duas vezes, por circunstâncias de trabalho. Era evidente uma atração recíproca. Forte. As energias que circulam ou fluem nessas situações estão fora das explicações científicas. Em geral, nós tampouco as compreendemos. Como disse, ela era casada e eu, também. A coisa ficou no ar, apenas no ar... Ninguém falou, nenhuma alusão ao que era patente. Na hora da despedida, no segundo encontro, de repente, nos jogamos nos braços um do outro e nos beijamos longamente. Foi só. Claro que fiquei por muito tempo lutando com a vontade de procurá-la. Quanto a ela, nada sei. Pensei muito no que deveria fazer. A decisão veio: uma carta!

Sim, escrever uma carta. Foi o que fiz. Uma longa carta. Começava supondo, como num bom roteiro, que a carta seria encontrada, na caixa do correio, por seu marido... A carta ficou enorme e continuava a crescer, enquanto me decidia se deveria, ou não, enviá-la. Um dia, procurei todo o tesão daquele momento, daquele infinito beijo de despedida. Perguntei aos companheiros de sempre, os infalíveis botões: Cadê a paixão que estava aqui? O gato comeu - responderam. De fato, não havia mais sinal de paixão. A carta continua comigo, jamais foi enviada. Ela, até quando tive notícias, anos depois, continuava com o mesmo marido.

Os frutos da primavera chegam com essa estação. Para tê-los no outono, é preciso transformar seu frescor em geléias ou compotas e; aí, corre-se o risco de esquecer de olhar e provar os frutos da outra estação.

 

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